GUERRA SEMÂNTICA
por Marcelo Träsel
 

Com quase 20 dias deitado em uma cama de hospital, dá para acompanhar bastante o conflito no Iraque. Conflito, porque guerra no manual de redação de FRAUDE é quando os dois países têm capacidade de infligir danos um sobre o outro. Não parece que tanques iraquianos vão adentrar a 5ª avenida em Manhattan a qualquer momento, de modo que seria melhor classificar essa patustada de Bush como mera invasão de outra nação soberana.

Enquanto a CNN mostra seus screenshots de Missile Commando e alardeia os resultados de uma pesquisa que apontam um apoio de 70% dos norte-americanos à guerra, o sujeito fica pensando com quais norte-americanos foi feita a pesquisa, com que métodos, qual o nível de confiança. Talvez com a metade dos norte-americanos que admitiram não saber onde fica o Iraque. Quem não sabe onde fica o Iraque, deve achar que Bin Laden, Saddam Hussein e Al-Qaeda são a mesma coisa, só uns bandos de árabes fanáticos e cruéis.

Não são. Bin Laden inclusive ofereceu ajuda ao Kuwait em 1991, para expulsar Saddam do território invadido, contanto que o emirado não chamasse os norte-americanos. Num vídeo recente, Bin Laden xingou condenou o regime de Saddam. Não parece que as relações entre o ditador iraquiano e a Al-Qaeda sejam lá muito estreitas. Ainda que fossem, nunca ficou provado que Bin Laden derrubou o World Trade Center.

Agora, Donald Rumsfeld, sim, tem ligações estreitas com Saddam. Foi ele quem negociou as armas químicas que o bigodudo jogou depois sobre os iranianos e, mais tarde, sobre os curdos. Por este ângulo, talvez devêssemos dar razão aos EUA, quando dizem que Saddam tem armas de destruição em massa. Eles têm os recibos! Assim como devem ter o boletim escolar de Bin Laden, da época em que ele foi treinado pela CIA para expulsar os russos do Afeganistão. Como se vê, a lei do carma continua válida.

O exército britânico continua uma piada - só superado pelo exército francês no quesito incompetência. Até agora, só conseguiram derrubar as próprias aeronaves e matar uns aos outros. Bem que o Rumsfeld disse que eles podiam ficar em casa, mesmo.

As alegações norte-americanas de que mostrar prisioneiros infringe a Convenção de Genebra são piada de mau gosto, vindas de onde vem, e já foram bastante discutidas em todos os lugares. São apenas mais um sintoma da desconexão entre a retórica e a realidade, que anda cada vez maior. Tudo o que está na mídia parece habitar um universo paralelo em que a semântica se distorce por efeitos de uma dobra espacial ou algo assim.

Deve ser por isso que emprestaram a alcunha aliados, os países que na Segunda Guerra combatiam o eixo fascista, e a deram ao que ficaria melhor como brancos anglo-saxões hidrófobos. Ao menos algumas redes de notícias já estão usando o termo coalizão. Os marqueteiros de Bush mostraram ser burros mesmo. Não satisfeitos com a péssima repercussão do Justiça Infinita, durante a caçada a Bin Laden, agora vêm com Liberdade para o Iraque. Isso para não falar em danos colaterais [civis estraçalhados], guerra cirúrgica [referindo-se às cirurgias do século XIX, com marreta e formão, e sem anestesia, é provável], choque e espanto [nomezinho de operação militar mais guei, esse].

E quem se importa se os mísseis são Tomahawk, Patriot ou Caramuru? Quem se importa quantos são? Alguém faz realmente idéia do que significa uma chuva de 500 desses, ou a diferença entre um caça F18, um F16 ou um Tornado? Citar estatísticas serve apenas para preencher o tempo até aparecer alguma notícia relevante, o que quase não acontece nesta guerra. Só guerra de propaganda. Ou para não apresentar as estatísticas que interessam: quantos civis morreram diretamente com os ataques, quantos morreram por falta de água, comida e energia, quantos vão morrer de doenças relacionadas.

A verdadeira pergunta, a que todos querem fazer, a resposta que interessa no momento em que um bando de fanáticos petroleiro-religiosos decide dizimar alguns minlhares de civis para tomar conta de uns pocinhos fálicos e mostrar para as líderes de torcida o quanto seus Patriots são enormes, a imprensa não responde nunca: quanto diabos ainda vale a minha vida no meio dessa merda toda?
 


Marcelo Träsel <trasel@portoweb.com.br>