A GUERRA POR DENTRO
Robert Fisk, março de 2003
 

No caminho até Bassora, a rede de televisão ITV filmava cachorros selvagens que destroçavam cadáveres de iraquianos. A cada instante, uma destas bestas famintas arrancava diante de nós um braço em estado de decomposição e se punha a correr com ele pelo deserto: os dedos mortos deixavam sulcos na areia, os restos de uma manga queimada tremulavam no ar.

"Só para documentar", me disse o câmera. Claro. Porque a ITV jamais mostraria tais imagens. As coisas que víamos - a imundice e obscenidade dos cadáveres - não poderiam ser mostradas. Em primeiro lugar porque não seria "apropriado" mostrar esta realidade pela televisão na hora do café da manhã. Em segundo lugar, porque se a televisão as mostrar ninguém voltaria jamais a respaldar a guerra.

Isto ocorreu em 1991. A "estrada da morte", é como chamavam então este caminho. Mas havia outra via paralela que era uma "estrada da morte" muito pior, uns quilômetros a leste, e foi cortesia da força aérea estadunidense, mas ninguém a filmou. A única imagem que houve destes horrores foi a fotografia de um iraquiano carbonizado dentro de seu caminhão.

Quando finalmente se publicou essa fotografia, ela se tornou uma espécie de ícone, pois representava exatamente o que havíamos visto.

Para que as baixas iraquianas aparecessem na televisão durante essa guerra do Golfo - já que houve outro conflito entre 1980 e 1988, e um terceiro está em preparação - era necessário que houvesse mortos cuidando de cair romanticamente de costas, com uma mão cobrindo o rosto destruído. Como nessas pinturas da Primeira Guerra Mundial dos britânicos mortos no campo de batalha, os iraquianos deviam morrer de forma amena e sem ferimentos evidentes, sem nenhum tipo de miséria, sem rastro de merda, muco ou sangue coagulado, se quisessem aparecer nos noticiários matutinos.

Sinto raiva dessa artimanha. Em Qaa, em 1996, quando os israelenses bombardearam durante 17 minutos a refugiados que estavam dentro de um complexo das Nações Unidas, e mataram 106 pessoas, mais da metade crianças, me deparei com uma jovem que abraçava um homem de meia idade. Estava morto. "Meu pai, meu pai", chorava abraçando sua cara. Não tinha um dos braços nem uma perna. Os israelenses haviam usado bombas de proximidade que produzem amputações. Mas quando esta cena chegou às telas de televisão européias e estadunidenses a câmera fez uma aproximação sobre o rosto da garota e do morto. As amputações não foram mostradas. A causa da morte foi apagada em nome do bom gosto. Era como se o homem tivesse morrido de cansaço, com a cabeça apoiada sobre o ombro de sua filha para morrer em paz.

Hoje, quando escuto as ameaças de George W. Bush contra o Iraque e as estridentes advertências moralistas de Tony Blair me pergunto: que sabem eles desta terrível realidade? Por acaso George Bush, que declinou de servir a seu país no Vietnã, tem alguma idéia de como cheiram os cadáveres? Tony Blair tem alguma pálida noção de como são as moscas, esses insetos grandes e azuis que se alimentam dos mortos no Oriente Médio, e que pousam na cara ou no caderno? Os soldados, sim, sabem. Recordo-me de um militar britânico que pediu emprestado o telefone via satélite da BBC durante a liberação do Kuwait, em 1991. Ele falou com sua família na Inglaterra enquanto eu o observava detidamente. "Eu vi coisas horríveis", disse, e depois teve um colapso nervoso; chorava e tremia, soltou o telefone, que ficou pendendo de sua mão. Sua família tinha idéia do que ele dizia? Não haviam entendido vendo a televisão.

Isto é o que cabe esperar ante o prospecto da guerra. Nossa gloriosa e patriótica população - ainda que somente cerca de 20% respaldem a atual loucura iraquiana - tem estado sempre protegida da realidade das mortes violentas. Mas eu estou muito surpreendido pelo número de cartas que recebo de veteranos da Segunda Guerra Mundial, homens e mulheres, todos contrários a esta nova guerra iraquiana, e que compartilham comigo suas inevitáveis recordações de membros destroçados e sofrimentos.

Recordo-me de um iraquiano ferido, com um pedaço de ferro incrustado na testa, que gritava como animal - que afinal, é o que todos somos - antes de morrer; de um menino palestino que simplesmente se jogou diante de mim quando um soldado israelense disparou contra ele para matar - deliberada e friamente, com intenção assassina - porque atirou uma pedra. E me recordo de uma israelense com a perna de uma mesa cravada em seu abdômen fora da pizzaria Sbarro de Jerusalém, depois que um atacante palestino decidiu executar as famílias que ali comiam. Também estão os montes de iraquianos mortos na batalha de Dezful, na guerra Irã-Iraque. A pestilência desses cadáveres invadiu nosso helicóptero até que vomitamos. E também me recordo, na Argélia, do jovem que me mostrou o rastro negro e denso que deixou o sangue de sua filha quando "islamitas" armados a degolaram.

Mas George W. Bush, Tony Blair, Dick Cheney, Jack Straw e todos os demais guerreirinhos que estão nos empurrando torpemente para a guerra não querem pensar nestas imagens vis. Para eles tudo são "bombardeios cirúrgicos", "danos colaterais" e todos os outros exemplos da pobreza lingüística própria da guerra. Vamos ter uma guerra justa, vamos libertar o povo do Iraque - obviamente também mataremos uma parte dele - e vamos lhe dar a democracia e proteger sua riqueza petrolífera.

Fingiremos que há pareceres por crimes de guerra e vamos ser sempre muito morais; veremos pela televisão nossos "expertos" em defesa em suas trincheiras sem sangue e escutaremos seus assombrosos conhecimentos sobre armas que arrancam cabeças.

Agora que penso nisso, recordo-me também da cabeça de um refugiado albanês, talhada limpidamente pelos norte-americanos quando bombardearam - por acidente, é claro - um comboio de refugiados em Kosovo, em 1999. Pensaram que se tratava de uma unidade militar sérvia. A cabeça barbada jazia na grama alta, com os olhos abertos; parecia ter sido cortada por um verdugo dos Tudor. Meses mais tarde me inteirei de seu nome e falei com uma garota que havia sido atingida pela cabeça cortada durante o bombardeio estadunidense. Foi ela quem respeitosamente deixou a cabeça na grama, onde a encontrei.

A OTAN - Organização do Tratado do Atlântico Norte, certamente, não pediu perdão à família do homem nem tampouco à garota. Ninguém pede perdão depois de uma guerra. Ninguém admite a verdade. Ninguém mostra o que nós vemos. Por isso nossos líderes e superiores podem ainda nos convencer a ir à guerra.
 


Jornalista irlandês de The Independent, especialista em Oriente Médio. Este texto foi publicado originalmente na revista Fórum, Brasil, março de 2003. Original em http://www.revistaforum.com.br/fisk.htm.