GUERRA, MENTIRAS E VIDEOTAPE:
O melhor reality show da temporada
por Tanira Lebedeff, de Los Angeles
 

A CNN – “the most trusted name in news” – não mostrou as imagens do protesto que aconteceu em Los Angeles, no sábado 22 de março. Mostraram manifestações contra a guerra ao Iraque em Nova Iorque, São Francisco, Washington e em outros lugares do planeta. Faltou cobrir Los Angeles. Aqui, os manifestantes se reuniram em Hollywood, em frente ao prédio da rede de TV.

Por que o protesto contra a política externa de um país, contra uma guerra considerada injusta, se volta também contra a mídia, mais precisamente contra a TV? Simples: a cobertura da guerra tornou-se um poderoso e perigoso aliado da empreitada de Bush, como se Jornalistas fizessem parte da “Coallition of the Willing”

No segundo dia da guerra, uma repórter da CNN comentava que “the world is still expecting the mass bombarding that the Pentagon has promised”, dizendo que o ‘mundo’ ainda estava à espera da operação “Shock and Awe”, o ataque massivo que o presidente tinha prometido, como se reclamando do ritmo lento da invasão. Bom, “Shock and Awe” não demorou a acontecer, e alguns dias depois, o absurdo. Num certo momento da programação um âncora da mesma rede anuncia “Se você perdeu, se você não viu, nós vamos repetir as imagens...”, e pela telinha vemos a noite virar dia em Bagdá, o céu tingido de tons alaranjados com a chuva de bombas americanas.  Sabe o “replay” dos melhores lances de uma partida de futebol? O entusiasmo em repetir essas imagens parecia o mesmo.

Strike on Iraq, Showdown Iraq, Countdown Iraq. Slogans geniais, trilha sonora a la filme épico - um show de edição de imagens. Clipes mostrando soldados no front estimulam louvor ao heroísmo e à bravura desses jovens. Nada errado nisso, que repete o mesmo tratamento dado aos bombeiros americanos depois de 9/11. Mas questionar por que esses soldados estão lá, ninguém questiona. Há um excesso de informação sobre estratégia, tipos de armas e veículos usados por cada país, um desfile de analistas e fontes extremamente oficiais. Mas as perguntas que deveriam ser feitas, ninguém faz. Aquela palavrinha que começa e termina com a letra “o” virou tabu.

Drama. Repórteres falam ao vivo do front usando máscaras contra gás. Corta para o estúdio. Apresentadores, comentaristas, militares da reserva e analistas de estratégia usam sofisticados gráficos e mapas interativos para explicar o que está acontecendo no campo de batalha. Esse “pseudo-jornalismo” toma emprestado as modernas técnicas de CGI (Computer Generated Images), que transformam em imagens as mais mirabolantes idéias dos cineastas. Estamos em Hollywood.

A guerra se tornou o “best reality show in town”. Nos estúdios e no deserto iraquiano, Jornalistas comemoram o uso de tecnologia sem precedentes na cobertura de uma guerra. Mas talvez o público preferisse assistir a um show sem precedentes de informação.

“A mídia fracassou. A guerra não estaria acontecendo se a mídia não tivesse coberto (a crise pré-invasão) com honestidade, mostrando os dois lados. Só cobrem um lado, só mostram o que sai da Casa Branca. Essa guerra é culpa deles.” Quem faz a grave acusação é Jodie Evans, co-fundadora do CodePink, um movimento feminista contra a guerra. Quando conversamos, numa manifestação, ela tinha acabado de chegar do Iraque.

Jerry Davis, aposentado, ri quando pergunto se ele acha que a TV esconde os reais motivos da guerra. “Desisti de assistir a televisão há alguns anos. A mídia foi cooptada por interesses corporativos, e o povo americano engole toda a besteira que contam.”

Veterana de protestos contra guerra, Teresa Bonpane, 68 anos, voluntária da ONG pacifista Office of the Americas, acha que “As redes de TV mentem sem pudor, nem fazem de conta que estão dizendo a verdade”. Pergunto qual o maior absurdo que ela já havia visto pela televisão: “Que o objetivo da invasão é liberar o povo iraquiano. Estamos assassinando por causa do óleo. Tudo o que dizem é mentira”, ela responde sem hesitar.

Incensos e algemas

Manifestações pedindo o fim do conflito e a retirada das tropas do Iraque são rotina nas principais cidades americanas. Também há os que saem às ruas em apoio à política externa do Presidente Bush.

Num jogo semântico, noticiários apresentam um grupo como “against the war” (contra a guerra), o outro como “pro-troops” (apoio às tropas), reforçando as palvras contra, against, e a favor, pro. Nas reportagens sobre os “pro-troops”, imagens em câmera lenta de bandeiras tremulando, trilha sonora melancólica, entrevistas simpáticas.

Não importa o quanto elas sejam belas e pacíficas, as manifestações pela paz são sempre retratadas com imagens do cordão de policiais (vejam como esses baderneiros precisam ser contidos!), manifestantes presos por “desobediência civil”. Não vemos o grupo Radical Cheerleaders, jovens que repetem a coreografia das animadoras de torcida cantando versos pela paz. Não vemos as velas e os incensos, as rodas de tambores e de capoeira. Não ouvimos o apelo em forma de canto de músicos latinos e rappers.

“Parece que falar em paz, ser contra o assassinato de inocentes é ser antipatriota. É um absurdo!”, critica a estudante Mary Beth Lague. Divertido foi ver um repórter de uma emissora local perguntar para um garoto “O que sua mãe vai dizer disso?” enquanto ele era preso. “Minha mãe também está aqui, protestando!”, foi a resposta.

Na Cama com Bush

Suzanne Fleming, professora, desenhou num cartaz as logomarcas de redes como Fox, CNN, MSNBC e a Casa Branca numa cama. Para Suzana, “embedded”, termo usado para designar repórteres que viajam pelo deserto iraquiano junto com as tropas americanas, significa “in bed” – na cama. “Bush nunca contou a verdade, e as redes de TV não fazem as perguntas que deveriam, apóiam a guerra porque lucram com isso”, ela diz.

Mas que interesses de lucro seriam esses? Alguns exemplos. NBC e MSNBC pertencem à General Electric, que fabrica, entre tantas outras coisas, motores para aviões de guerra. A CNN, precursora na transmissão de notícias 24 horas, sempre demonstrou uma postura pró-Israel. Saddam Hussein, portanto, é um inimigo natural em sua política editorial. A Fox (que apresenta “Fair and Balanced News”) pertence ao magnata Rupert Murdoch, australiano naturalizado americano, que tem 175 jornais espalhados pelo mundo. Declarou em entrevistas que apóia os EUA porque o preço do petróleo vai cair com a derota do Iraque. Também é árduo opositor do Euro, moeda que alguns países do Oriente Médio vêm adotando na comercialização do petróleo.

E assim mudaram as regras dos manuais de telejornalismo. Ao longo do conflito somos presenteados com varios exemplos de desinformacão.

Nada foi comentado, pela telinha, sobre o afastamento de Richard Perle, um dos arquitetos da “Operation Iraqi Freedom”, acusado por um Jornalista investigativo americano de fazer negocios suspeitos com um empresario saudita.

O atentado a um mercado publico em Bagdá nunca foi assumido pelas autoridades americanas ou britanicas (que alegam que um míssel do próprio Iraque possa ter provocado a morte de mais de 50 pessoas). Mas o veterano correspondente de guerra Robert Fisk, Jornalista independente, afirma em sua website que um pedaco do míssel encontrado entre os escombros tem um codigo de barras indicando um sofisticado sistema de acionamento via computador. Mesmo com essa evidência, ninguem questiona - a bom empreendedor, meia verdade basta.

Ou talvez a TV confie piamente na teoria da “humanidade dos ataques”, apresentada pelo Secretario de Defesa americano Donald Rumsfeld em uma entrevista coletiva. “As armas usadas hoje têm uma precisão não imaginada em conflitos anteriores. Há um cuidado, uma ‘humanidade’ para que elas sejam acionadas atingindo apenas alvos militares”, disse Rumsfeld, ao considerar infeliz e incorreta a comparação entre os ataques a Bagdá e bombardeios ocorridos durante a II Guerra Mundial, feita por alguns apresentadores de TV.

O que a televisão esqueceu é que a mesma tecnologia que traz a ação ao vivo do front também nos garante acesso a muitas outras fontes informação.

No domingo 23 de marco a manchete era a captura de soldados americanos e as “chocantes” entrevistas transmitidas pela Al Jazeera. Imagens que Pentágono sugeriu que as emissoras americanas não mostrassem - ou censurou - por serem “shocking” e “disturbing”. Aquele bordão foi repetido o dia inteiro, “as imagens são chocantes, são chocantes, chocantes”, disseminando a cultura do medo que o cineasta Michael Moore retrata no premiado documentário “Bowling for Columbine” (Tiros em Columbine). Quem tem TV a cabo ou via satélite e Internet podia ver as tais imagens naquele momento. Vi no site do jornal italiano Corrieri della Sera. O que havia de chocante nelas: são jovens de 18, 20 e poucos anos (inclusive uma garota que se alistou nas Forcas Armadas vislumbrando uma carreira de “chef”), arriscando a pele pelo interesse egoísta de um governate e seus aliados.
 
Pelo rádio, a “Guerra à Paz”

Com o início da guerra e do espetáculo pela TV, os americanos encontraram uma trincheira – onde buscar informação.

Jornalistas “un-embedded” que transmitem direto de Bagdá, como Robert Fisk, ou May Ying Welsh. O testemunho da Associação de Veteranos da 1a Guerra do Golfo sobre o descaso das Forças Armadas americanas diante das graves seqüelas que esses soldados sofrem até hoje. Acusações sérias como a de que poços de petróleo no Kwait teriam sido incendiados por agentes sob ordens dos EUA, fato atribuído a Saddam Hussein durante a tal primeira guerra. A dificuldade de divulgar, sob a vigilancia do governo iraquiano, quais alvos foram atingidos na capital. Para ouvir coisas assim, os americanos sintonizam a Radio Pacifica, retransmitida por emissoras em todo país.

“Pela rádio alternativa ouço pessoas que estao se manifestando e mostrando que esse conflito não tem o único objetivo de desarmar Saddam Hussein”, diz Mary Beth Lague.

“Há muita propaganda contra as Naçoes Unidas , contra o movimento pacifista, contra países que não apóiam a guerra. O governo que controla a midia para que o público continue ignorante. Nós estamos aqui não apenas porque queremos paz. Estamos aqui porque sabemos a verdade”, diz Juan Ramirez, outro ouvinte da Pacifica.

A Rádio Pacifica foi criada no fim dos anos 40, a partir do movimento pela paz pós-II Guerra Mundial. E veja por quê: o Jornalista Lewis Hill foi demitido da grande rede para a qual trabalhava por não querer distorcer uma notícia em nome de interesses corporativos. Mantida até hoje por doações de ouvintes e fundações, a Pacifica se tornou um bastião da liberdade de expressão na época da “caça às bruxas” promovida pelo Senador MacCarthy na luta contra o comunismo. Em 1967, por exemplo, transmitiu uma entrevista ao vivo com Che Guevara, direto da Bolívia, dias antes do seu assassinato.

No primeiro dia da “Gulf War II” a Rádio Pacifica anunciava que a “invasão” do Iraque “começava à força”. Chama a operação de “shocking and awsome” – chocante e estarrecedora. Os programas são embalados por ritmos orientais e rocks que falam de paz, os mesmos hinos do movimento contra a guerra do Vietnã. Amy Goodman, do programa Democracy Now, também adotou um slogan para sua cobertura do conflito: “War on Peace – The Invasion of Iraq” (Guerra à paz, a invasão do Iraque).

A confiança na cobertura apresentada pela Pacifica é tão grande, que em qualquer caminhada ou manifestação pela paz você verá, ao lado dos cartazes que criticam a guerra promovida pela dinastia Bush, outros que sugerem para sintonizar na emissora.

“Os americanos sofrem uma lavagem cerebral desde cedo”, diz Nina Zvaleko, carregando um cartaz em se lê ‘Got Truth? Pacifica Radio’. “Estou impressionada com a reação do publico, há muita gente questionando a guerra, há um debate global através da Internet. Parece que estamos melhor informados, mas ainda há muita ignorancia.”

Desafio

Durante o mês de abril, ongs pacifistas dos Estados Unidos estão promovendo um “media challenge”. Simpatizantes da causa estão enviando mensagens via telefone, fax e email para as principais redes de televisão, desafiando editores a apresentar uma cobertura equilibrada, dar espaço tambem para especialistas e líderes políticos contra a guerra, incluir imagens de vítimas civis (chamadas de “collateral effect”), e questionar as informaçoes oferecidas pelo governo.

Dizer que o Jornalismo é puro e imparcial é hipocrisia. Qualquer abordagem sobre um assunto, mesmo a da Pacifica, tem sua tendência. Mas Rádio Pacifica se apresenta como “The Voice of Mass Dissent”, deixando clara sua posição à esquerda do “império”. Quem se anuncia como “fonte de notícias justas e imparcias”, como “a rede em que se pode confiar” e oferece um Jornalismo de interesse está fazendo propaganda. Propaganda enganosa.
 
Sim, essa guerra é mesmo sem fundamento. Por que ir até o Iraque? Há um meio de destruição (não de comunicação) em massa dentro de cada sala de estar americana. No ritmo que está, a cobertura feita pela TV destrói consciências, e o que é pior, coloca em risco a credibilidade e tudo o que há de belo no Jornalismo.
 


Tanira Lebedeff <taniral@hotmail.com>