CONFORME NINGUÉM ESPERAVA
por Jorge Furtado

Corra para a livraria mais perto de sua casa e compre de presente de natal para você mesmo o livro "No ar: PRK-30!", de Paulo Perdigão. (Editora Casa da Palavra, 2003). Perdigão é um profundo conhecedor de muitos assuntos, é praticamente um especialista em tudo, incluindo futebol, cinema e Sartre. E ele agora resolveu contar, com a admirável obsessão de sempre, a história do PRK-30. Para quem não lembra (alguém lembra?) PRK-30 era um programa de rádio de humor, criado e apresentado por Lauro Borges e Castro Barbosa. Ficou no ar por 20 anos, entre 1944 e 1964. (Que eu lembre, só ouvi as gravações em disco, 78 rotações, faz tempo, antes da invenção do cachorro.) Em 1947, no auge do sucesso da Rádio Nacional, o PRK-30 era o programa mais ouvido do Brasil, com mais de 50% dos índices de audiência. Além do ótimo texto do Perdigão, o livro tem ainda um apêndice com vários roteiros, discografia e filmografia completa, fotos e, maravilha, dois cds com gravações dos arquivos de Lauro Borges, Renato Murce e do próprio autor.

Lauro e Castro faziam as vozes das dezenas de personagens. A interpretação é excelente e o texto, em vários momentos, brilhante. Lauro anunciava a presença de um convidado: "Conforme ninguém esperava, estamos recebendo hoje... " Um dos programas é aberto pelos locutores Megatério Nababo d'Alicerce (Castro), um português que se orgulha de "falar inglês em vários idiomas", e Otelo Trigueiro (Lauro), "a voz onde as abelhas se inspiram para fazer o mel" que fala para o "deleite condensado das morenas inequívocas, das louras inelutáveis e até das morenas ferruginosas. Para todas aquelas que estão me ouvindo, meus sinceros parabéns!" Eles anunciam a novela "Só morra em Godoma!" e apresentam seus personagens: "Romeu de Pontapelier, tio de uma sobrinha. Amaro, primo de Rosa. Rosa, prima de Amaro. Alice, filha de um vizinho da esquerda. Dona Esquerda, vizinha do pai de Alice. Dona Moema, esposa do doutor Valério, já falecido e portanto viúva".

Na sessão de reclamações, Otelo Trigueiro lê uma carta "de um nosso inteligente ouvinte do interior que diz o seguinte: É meu desejo que os senhores declarem pelo microfone desta emissora que a notícia que os matutinos desta tarde publicaram dizendo que foi preso o perigoso desordeiro Juliano Ferreira das Dores, não se refere absolutamente a minha pessoa. É bem verdade que eu me chamo Diomedes de Azevedo, mas quem não me conhece pode pensar perfeitamente que eu é que sou o tal Juliano Ferreira das Dores. Eu não quero confusões comigo. Muito agradeço. Assinado: Luis Maurício."

Americanos e ingleses são os reis da "one line comedy", onde piadas curtas se sucedem num ritmo frenético. A tradição começou nos palcos, passa pelo rádio e o cinema e termina na televisão. Alguns nomes se tornaram lendas, como James L. Brooks, da equipe de criação de Mary Tyller Moore, Família Dinossauro e Os Simpsons, precisa mais? A família Dinossauro foi feito em parceria com Jim Henson, o criador dos Muppets, outro craque. A tradição americana segue com Jerry Seinfeld e Larry David ("Seinfield"), David Crane e Marta Kauffman ("Friends"), Trey Parker e Matt Stone ("South Park"). Os ingleses também são feras, basta lembrar da turma do Monty Phiton (Graham Chapman, John Cleese, Eric Idle, Terry Gilliam, Terry Jones e Michael Palin) ou de Jennifer Saunders e Dawn French, da série "Absolutely Fabulous".

Woody Allen, com sua origem no teatro, é um mestre que extrapolou o gênero, mas muitas de suas primeiras comédias tem dezenas de ótimas piadas. Uma das melhores é "A Última Noite de Boris Krushenko" (Love And Death,1975), uma espécie de "Guerra e Paz" pelo lado do avesso. Há uma cena em que um coronel tenta convencer Boris (Woody) a se alistar na guerra contra a França, mas ele não está muito a fim.

CORONEL - (furioso) E o que você fará quando os franceses invadirem a Rússia e estuprarem a sua irmã?!

WOODY - Eu não tenho irmã.

O cinema tem grandes criadores de piadas, como Ernest Lubitsch, Preston Sturges, Billy Wilder, mas é no rádio, onde o texto é a principal estrela, que a "one line comedy" atinge seus pontos mais altos. O humor da PRK-30, ágil, absurdo e muito inteligente, alcança em alguns momentos o nível dos maiores mestres no gênero, Groucho e Chico Marx. "Flywheel, Shyster e Flywheel", escrito e apresentado pelos dois, era transmitido pela NBC e durou apenas um ano, de novembro de 1932 a maio de 1933. É a maior concentração de piadas por página que eu já li, faz Os Simpsons parecerem a TV Senado. Muitas piadas foram parar nos filmes mas algumas funcionam melhor no rádio. (Os 26 roteiros foram publicados pela Pantheon Books, "Flywheel, Shyster e Flywheel", e também pela Tusquets Editores, "Groucho e Chico, Abogados").

"Flywheel, Shyster e Flywheel" originalmente se chamava "Beagle, Shyster e Beagle", mas um advogado furioso chamado Beagle ameaçou processar a NBC e, a partir do quarto episódio, o nome foi mudado. (Para comunicar a mudança aos ouvintes, a secretária Miss Dimple atende ao telefone e diz: "Sim, a empresa mudou de nome. É que o chefe se divorciou e resolveu adotar o nome de solteiro".) No primeiro episódio Groucho ainda é o Dr. Beagle e Chico é Emmanuel Ravelli, seu assistente.

Groucho entra no escritório.

MISS DIMPLE - Bom dia, doutor Beagle.

GROUCHO - Que bom dia, o quê... Ligue imediatamente para o presidente Hoover. Há uma foto minha na delegacia e eu estou com uma cara horrível! Pareço meu pai. Na verdade... é o meu pai. Esqueça o presidente! Ligue para a delegacia e pergunte de quanto é a recompensa.

MISS DIMPLE - Doutor Beagle, o senhor precisa assinar a correspondência.

GROUCHO - Agora não, tive um dia péssimo no tribunal.

MISS DIMPLE - Qual era o caso?

GROUCHO - Agressão e escândalo público, mas acho que serei absolvido. E por que não seria, se ela me bateu primeiro?

MISS DIMPLE - Doutor Beagle! O senhor bateu numa mulher?

GROUCHO - Claro! Ela era do meu tamanho... Na verdade, era até menor que eu.

No mesmo episódio Chico é contratado para seguir a esposa do Dr. Jones. Depois de uma semana, o cliente cobra os resultados da investigação.

JONES - Você seguiu a minha mulher?

CHICO - Desde o primeiro minuto, como um cão... Lembra-se de quando me deu a foto dela?

JONES - Sim.

CHICO - Bem, eu comecei a trabalhar imediatamente. Como um cão, eu lhe asseguro. Em uma hora, talvez até em menos de uma hora...

JONES - Sim?

CHICO - Eu perdi a foto.

JONES - Então o senhor não seguiu a minha mulher?

CHICO - É claro que segui. Fui direto a sua casa.

JONES - E o que descobriu?

CHICO - Descobri que ela não estava em casa.

JONES - E assim o senhor perdeu a semana inteira...

CHICO - Claro que não! Na segunda-feira, segui sua mulher. Na terça fui ao jogo mas ela não apareceu. Na quarta ela foi ao jogo mas eu não apareci. Na quinta houve dois jogos, mas eu não fui. Nem ela. Na sexta choveu e não teve jogo.

O Brasil tem alguns mestres nos textos de humor, Millôr, Veríssimo, Fausto Wolf. Na "one line comedy", nossos maiores especialistas em atividade são o Alexandre Machado ("Calor na Bacurinha", "Os Normais") e Cláudio Paiva ("TV Pirata", "Grande Família"). O livro de Paulo Perdigão, além de muito engraçado, resgata o texto brilhante de Lauro Borges e Castro Barbosa, que andava perdido na memória de ouvintes cada vez mais velhos e esquecidos. Se você precisa de uma boa desculpa para se divertir, compre o livro como um documento histórico. Piada também é cultura.

Jorge Furtado
jfurtado@portoweb.com.br


O professor Maurício Nogueira Tavares, da Comunicação da UFBA,
também escreveu sobre o programa PRK-30 em "A Paródia no Rádio"

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