FELIZES PARA SEMPRE
por Miguel da Costa Franco
 

Eram suas melhores amigas, Paula e Ana Júlia. Por isso foram elas as primeiras a saber da decisão.

Naqueles anos todos, com as tantas interrupções havidas em suas relações, fruto da vida cigana que levavam os dois, era com elas que os laços se haviam mantido mais firmes.

Desde que Júlio e Andréia se haviam apaixonado em Moçambique, passado poucas e boas no interior de Goiás ou sido obrigados a coisas indescritíveis nas lonjuras do Quênia, Paula e Ana Júlia mantinham-se amigas fiéis, ora uma ora outra cuidando do apartamentinho abandonado na Rua Olavo Bilac, providenciando papéis sempre necessários nesse mundão burocrata, remetendo-lhes a grana da pensão de Andréia, filha de militar.

No intervalo de ócio que a carreira lhe propiciara, fora Júlio quem quisera voltar a Porto Alegre, em boa parte porque era ali que se encontravam suas poucas amizades inabaláveis.

Paula era uma morena alta e dentuça, uma socióloga amatronada e falastrona, a quem a idade e a mínima experiência amorosa já permitiam catalogar-se como solteirona.

Ana Júlia era uma loira mignon, uma pedagoga silenciosa e atilada, a quem a idade e as desastradas experiências amorosas recomendavam admitir-se solteirona.

- Agora é o Paquistão! - declarou, solene, o Júlio, contando com o silêncio cúmplice e obsequioso de Andréia.

- O quê? - espantou-se Ana Júlia.

- Vocês estão loucos? - quis saber a Paula. - Aquilo lá só tem muçulmano!

- Vai ser bom - declarou Júlio, pouco convicto.

- Mas só tem muçulmano, Júlio! - reforçou Ana Júlia. - O que vai ser da Andréia?

- A gente se ajeita - suspirou Andréia, acostumada a seguir o companheiro naquela vida louca.

- Mas vocês nem são casados... Isso não vai prestar... Aquela gente é muito estranha! Mulher não existe para eles - disse Ana Júlia.

- Melhor casar antes! - sugeriu a Paula.

- Casar, nunca! Casamento me dá uma coceira danada - disse Júlio.

- Não dá nem tempo, viajamos segunda - declarou Andréia, os olhos meio marejados, abandonando-se ao abraço amistoso de Paula.

- Mas tu não podes ir prá lá assim,  Andréia - choramingou Ana Júlia. - É fria ser mulher solteira e amontoada num país como esse! Concubina, percebes? De mais a mais, vais passar dias e dias sozinha, como sempre.

- Qual é, moçada? - indignou-se Júlio. - Há anos vivemos assim, numa boa!

- Moçambique é uma coisa, se fala português. Goiás, tudo bem. No Quênia, ela tinha companhia e vocês moravam num hotelzão cheio de turistas. Mas Paquistão, tenha dó! - empertigou-se Paula.

- Melhor casar antes! Mulher casada tá mais protegida - insistiu Ana Júlia.

- Tá bem, vocês casam por nós. - brincou Júlio. - Deixo autorizado na próxima procuração.

- Casamos, mesmo. - declarou Paula. - Pensa que não?  Pelo menos a guria vai ter a certidão para mostrar para aquele bando de doidos...

- Dou uma burka prá ela - brincou Júlio. - Passa reto...

- Engraçadinho!  - protestou Andréia. - Taí, gostei, vou deixar uma procuração para vocês casarem por mim.

- Acho que assim não vai doer. - avaliou Júlio. - E os casados ainda  recebem auxílio-família. Deixo a procuração também.

- Vão perder a maior festa, seus trouxas! - desdenhou Paula.

- Festa? - estranhou Ana Júlia.

- Claro, ora. Se vamos casar, temos que fazer uma festa, não temos? - animou-se Paula. - Vou até fazer vestido de noiva...Eu sempre quis casar com tudo que tenho direito.

- Eu também - murmurou Ana, pensativa.

- Faz teu vestido também! - sugeriu Andréia. -  Casam as duas como sempre quiseram.

- Depois mandamos as fotos prá vocês - completou Paula, empolgada com a idéia.

A festa foi no Veleiros do Sul, uma brisa leve sacudindo os barcos, a luz amarelada do trapiche refletindo-se na água do rio, cuja cor barrosa a noite escondia.

Quem estranhou mesmo foi o juiz.

Primeiro entrou Paula, radiosa em seu vestido branco finamente bordado, os ombros semi-nus protegidos do frescor da noite por uma gaze etérea de seda. O véu perdia-se por metros e metros, seguro nas pontas pelos filhos de Margot e Aparecida, colegas do Instituto, garbosamente incorporados aos seus papéis.

Depois, na vez do noivo, despontou Ana Júlia, deslumbrante em seu vestido branco de organdi, vistosos ramos de acácia mesclando-se aos cabelos, os lábios carnudos emoldurando o sorriso que lhe voltava jovial ao rosto. Naquela noite, Ana esquecera-se em casa de todas as rugas que já brotavam aqui e ali e surgia esplendorosa por entre as mesas do clube.

- Esse é o noivo? - quis confirmar o juiz.

- Tem procuração - apressou-se Paula, cujo coração batia sofregamente no peito, as mãos frias e úmidas de emoção e ardor.

Ana Júlia percorreu em êxtase a galeria formada pelos convidados, os olhos amorosos e brilhantes disparando ternura pela amiga que a esperava junto à mesinha de pés torneados que faria as vezes de altar.

Deram-se as mãos em frente ao juiz e ouviram-no pedir-lhes que confirmassem sua condição de representantes de Júlio e Andréia, e foi essa a primeira vez em que disseram sim, sim, sim, repetidamente.

Na hora do sim definitivo, as lágrimas correram dos olhos da mãe de Andréia, dona Dulce, como se desejaria, e Ana Júlia apertou a mão de Paula de um jeito todo especial, como faria Júlio com suas mãos de cirurgião se estivesse ali. Paula correspondeu com os olhos cheios d’água, pois Andréia era muito emotiva.

Encerrada a cerimônia, um beijo estrondoso selou a união de Júlio e Andréia. Eles nunca tiveram a menor vergonha de se excederem nas carícias em público.

Não são uns amores?, emocionou-se Dona Dulce. Mas o juiz tratou de pegar a estrada, enquanto os padrinhos encerravam a cena inusitada com simples e tradicionais grãos de arroz aspergidos sobre os noivos.

Ana e Paula adoraram aquela noite.

A lua-de-mel numa pousada de Gramado foi um descobrimento. Difícil foi chegar lá, porque Júlio dirigia muito mal e estava meio bêbado de tanta champanhe.

Guardaram uma cópia de todas as fotos animadas que bateram com cada convidado, reunindo-as num álbum com adereços dourados. A outra, por direito, foi enviada para os amigos no Paquistão.

E viveram felizes para sempre no apartamentinho da Olavo Bilac.
 

Miguel da Costa Franco
mig@portoweb.com.br
 
 



O casamento por procuração é previsto no artigo 1620
do Código Civil Brasileiro.
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