POR QUE DESPIRAM AS VELHAS ORIENTAIS?
por Vitor Necchi
 

Fui vencido pela lembrança recorrente e pelo reiterado mal-estar. As imagens de mulheres de traços orientais com idade bem avançada embaralhavam meu pensamento. Talvez o que monopolizou minha mente não sejam propriamente as mulheres, mas a nudez flácida e inesperada que vi estampada em um daqueles livros metidos a modernos, coisa de gente especialista em design e outras cousas mais. No fundo, o que mais me tocou não foi a decrepitude daquelas velhas de corpo desnudo e encarquilhado, nem o olhar débil de quem não sabe o que está acontecendo, mas a motivação de quem fez a fotografia. Por que despiram as velhas orientais? Ou melhor, por que fotografaram elas nuas?

Até agora não sei do que trata aquele livro de grandes dimensões que estava deitado, e não de pé, na estante. Acho que se chama Matador. Folheei rapidamente e tive que voltar algumas páginas quando sei lá o que me chamou a atenção. Quando vi a primeira senhora totalmente nua ocupando a página branca, levei um susto. Nunca tinha visto algo parecido, a foto da nudez de uma mulher tão idosa e debilitada.

Acho que ela não tem dentes. Toda pele é uma sucessão de dobras e sinuosidades esquálidas. Suas mamas são tecidos sem enchimento, dois saquinhos caídos. Seu ventre é um emaranhado de sulcos. Sua vagina deve estar lá, na extremidade de um abdômen murcho e torto. Quando virei a página, tive vontade de chorar. A outra mulher sustenta em pernas frágeis um corpo assimétrico que lembra uma forma orgânica derivada de um ser humano, mas que não parece mais um ser humano. Na seqüência, outras velhas orientais ilustravam com sua nudez quase centenária o livro de um provável jovem ocidental.

Não sei o que me impactou mais, se as fotos ou se a minha reação. Ou tudo. Enquanto dirigia até minha casa, me lembrei do desentendimento que tive com um dos meus alunos mais queridos. O garoto enviava e-mails supostamente engraçadinhos com uma freqüência exagerada. Um deles, se não me engano intitulado "acidente de trabalho", apresentava a foto de uma senhora nua que olhava para a própria dentadura presa em um pênis. Na mesma hora respondi e perguntei se estava tudo bem com ele, se ele tinha algum problema, se ele não sentia nenhum constrangimento de repassar uma imagem como aquela.

Há coisas que para mim devem ser respeitadas sobremaneira, sem precisar de recomendação ou ordem. Não se trata do respeito cego, por exemplo, que a maioria dos cidadãos dos Estados Unidos nutre pelo seu presidente, mesmo sendo ele um imbecil eleito de maneira duvidosa e que se sente no direito de matar quem quiser, sob argumentos no mínimo falaciosos. Refiro-me a um respeito tácito que tenho, por exemplo, para com os velhos.

As imagens do livro eram impactantes demais, cruéis. Nada de sugestionamentos: o livro oferece ao leitor a vida se esvaindo num corpo deformado. Não que eu esperasse um corpo em forma, mas uma essência de sarcasmo vigora naquelas imagens. Já vi velhos nus e fotos de velhos nus, mas nunca havia visto fotos que agridem seus modelos velhos.

Pureza? Moralismo? Pudor? Medo da velhice? O que motivou minha reação? O que fez aquelas senhoras que devem ter nascido perto da aurora do século passado tirar suas roupas? Questões morais devem entrar no debate artístico? A arte é amoral? O que pretendia a pessoa que fotografou aqueles corpos? Isso me lembra aquelas famigeradas pegadinhas que se apossaram da televisão brasileira. Em nome do riso fácil e imbecilizante, vale tudo. Vale provocar um operário que volta para casa ao sugerir que ele seja homossexual ou que sua mulher está socializando aquilo que deveria ser só dele. Também vale servir um suco natural para uma jovem vendedora de loja de calçada e depois dizer que a bebida tem fezes como ingrediente, ou pedir para um garoto chutar uma bola recheada de pedra e por aí vai, porque o sarcasmo e a guerra pela audiência não respeitam ninguém. Esses cidadãos, todos invariavelmente pobres, até podem autorizar que sua imagem ridícula seja exibida em rede nacional, para gáudio da choldra refestelada no sofá, mas novamente pergunto: por que fotografaram as velhas orientais peladas? Por que as emissoras de televisão não respeitam ninguém? O diretor de programação deixaria exibir a imagem do seu primogênito pulando numa perna só após quase quebrar os dedos do pé? O dono da emissora permitiria que de norte a sul fosse veiculado o instante em que sua filha gospe a bebida que pode ter esterco na fórmula? Se eles não consentirem, significa que boa coisa não deve ser.

Assim como a velhice, a infância ocupa um espaço de prerrogativas na minha cabeça. Talvez seja por isso que numa noite de verão também quase chorei no escuro do meu carro quando fui abordado por um garoto que sobrevive de esmolas em sinaleiras. Neguei o dinheiro, e ele insistiu: "dá um trocado, tio". Até que, para me convencer, sugeriu que poderia fazer "aquelas coisas" comigo. Que coisas? "Ah, o senhor sabe." Será que eu sabia mesmo? Será que aquele garotinho estava se prostituindo em troca de algumas moedas? Quando a mímica do corpo franzino começou a mandar pro espaço qualquer dúvida, saí do inferno daquela sinaleira deixando para trás minha impotência e minha raiva.

Não gostaria que vocês fossem abordados pelo guri da sinaleira, mas gostaria que vocês vissem a velha oriental pelada no livro. Tenho infinitas dúvidas, e talvez outras visões me ajudassem a entender o estiloso volume de capa vermelho. Mas acho melhor não. É melhor deixar assim. Prefiro minha tristeza do que uma explicação canhestra que justifique a fotografia de uma velha oriental pelada num livrinho moderno deitado na prateleira de uma livraria de shopping.
 

Vitor Necchi
vitornecchi@uol.com.br


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