AS ARMAS DA TOLICE
Flávio Tavares
Zero Hora, 09/10/2005
 

A principal característica da tolice é se apresentar como instrumento messiânico, salvador do mundo e das coisas, fora do qual tudo é inferno. Só ela "salva" e, sem ela, tudo é "caos".

A característica secundária da tolice (mas não acessória e, sim, igualmente fundamental) é a repetição, esse infinito ato de insistir e insistir no que afirma, reproduzir-se milhões de vezes como uma série de quilométricos espelhos enfileirados, cada qual imitando ou refazendo o outro: o da frente é o reflexo do que está atrás, e o posterior reproduz o anterior. Ou vice-versa.

Ao ser apenas um espelho, a aparente verdade da tolice é só uma fantasia ou ilusão óptica. Ou, de fato, uma mentira. E, quase sempre, uma deslavada mentira escondendo a cara sob um capuz que lhe tapa inclusive os olhos.

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A campanha pela proibição do comércio de armas é uma dessas tolices encapuzadas, às quais se atribui a hierarquia de "descobrimento salvador".

Responsabilizar a venda legal de armas pela violência ou por "incitar ao crime", não é, sequer, uma tolice de boa-fé, mas uma invenção infantil, cujos autores estão longe da idade adulta. Como toda ingenuidade vestida de séria, torna-se perigosa quando se impõe como norma de vida ao conjunto da sociedade: ao aceitarmos a ilusão como verdade, deixamos de ver as causas daquilo que nos aflige e nos contentamos com paliativos inúteis que, de fato, são máscaras escondendo a cara concreta dos desastres.

Há mais exigências para comprar um revólver numa loja do que para obter um empréstimo em banco. Pode-se pensar, realmente, que isso gere a violência que hoje nos inquieta? Honestamente, pode o revólver guardado na gaveta (ou o que levamos excepcionalmente ao coldre) significar ameaça ao nosso vizinho ou colega de trabalho?

Indago: a existência do revólver expandiu a violência brutalizante de hoje, em que já não caminhamos nas ruas ou que, ao parar o carro, desconfiamos até do vermelho do semáforo? Ou a síntese da violência atual é a marginalidade social crescendo em progressão algébrica, enquanto a inércia dos políticos se limita a contemplá-la e vomitar palavras vãs ou estatísticas alheias ao Brasil?

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Limitar o crime à existência de armas legais é insistir na mentira de que a violência é, apenas, um caso de polícia, como se fosse possível colocar um brigadiano ao lado de cada cidadão, como escolta de proteção do criminoso. Ninguém pensaria nisso sequer nos antigos tempos em que a polícia era confiável, muito menos agora, quando a sanha truculenta com que o governo orienta a Brigada Militar reapareceu no assassinato em Sapiranga ou no ataque aos torcedores (crianças incluídas) no estádio Beira-Rio.

Nada se faz para pôr fim à marginalidade social. Não nos inquieta a degradação urbana em que a gurizada nasce e se cria no ambiente hostil do crime. Nem a música que incita à violência, ou os programas grosseiros da TV. Nem os apelos das quinquilharias da sociedade de consumo, que despertam a ânsia de compra infinita já na infância e explicam, também, a prostituição das meninas ou os assaltos cometidos por meninos.

Tampouco nos inquieta a violência com que o narcotráfico impõe o comércio vicioso da droga, com tudo o que dele se sabe. Mas se gastam R$ 600 milhões num referendo popular sobre a venda de armas, como se aí fosse o núcleo de tudo.

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Nos EUA, nos anos 1920-30 proibiu-se o comércio de bebidas "para terminar com o alcoolismo". Mas isso só o multiplicou e criou, ainda, a máfia clandestina da aguardente e similares, base dos grandes criminosos civis do século 20, dos quais Al Capone foi o símbolo. O poder dos gângsteres envolveu a própria CIA e durou até os anos 1960, quando o presidente Kennedy os enfrentou e foi assassinado.

Entre nós, o poder público permitiu que o intocável "jogo do bicho" se desdobrasse no narcotráfico e, armado, corrompesse de alto a baixo. Se o "sim" vencer, que futuro nos aguarda com o previsível gangsterismo da venda clandestina de armas?
 



* publicado em Zero Hora dia 09/10/2005. Não está mais disponível na internet.