AOS OLHOS DE LIA
por Miguel da Costa Franco
mig@portoweb.com.br
O dia estava ventoso e a casa estranhamente tranquila. Talvez porque
quem me abandonara só houvesse carregado consigo suas
necessidades todas: falar, distribuir tarefas, falar, falar, programar
os próximos passos de nossa existência já
tão ordenada ou simplesmente ver qualquer coisa idiota na
tevê.
O vento geme como gatos e eu penso em Lia.
Lia engana. Lia mente. Não, Lia é quente, impulsiva,
obstinada. Nos faz pretendê-la ardente até mesmo passando
a roupa ou limpando as folhas do jardim. Tão cheia de
cálidos, túrgidos, rígidos, que palpitam soturnos,
bum, bum, bum, como um coração desatado.
Sim, acho que Lia vale a pena: ela é um recado para a humanidade
mecanicizada. Em verdade, bastaria conhecer o seu canto energizado, mas
já não me contenho em ficar olhando o trem. A vida correu
demais e muitas bagagens foram se perdendo pelo caminho. Vadiando
à beira da estrada de ferro, me permito abri-las, uma a uma, e
brincar com carpins e paletós, lingeries e pijaminhas de
pelúcia, como se fora eu o mago inventor do strip-tease. Aprendi
que não adianta guardar nada, a não ser um peito recheado
de emoções, sejam quais forem elas, amores ou dores,
tesões ou medos. Somos cautelosos demais com os sentimentos!
Lia acenou da janela do trem e me provocou com sua solta simplicidade,
sua franqueza jovial, me fez pensar em sua boca como uma caverna
cálida. Talvez idealize relações mais soltas e
certeiras, por imaginar poder dizer-lhe bem diretamente, desce
daí, vem aqui fazer amor comigo, deita teu corpo atento junto ao
meu.
Sempre me enterneceram os que não usam máscaras tolas.
Quanto às minhas, que também as tenho, preocupo-me em
rasgá-las uma a uma. Gosto de imaginar-me deitando na grama com
o terno novo de lã fria ou limpando a mesa do café com
minha gravata de melhor tecido. Sei que são apenas
símbolos, mas seria como um ritual, entende? As roupas têm
também sua razão de ser e suas conveniências. Me
serviram até aqui. Agora preferiria andar de qualquer jeito, ou
até mesmo nu, apesar de já não ter o corpo esbelto
da juventude nem tatuagens chamativas.
Pouco se me dá se Lia me acharia desejável pelo
diâmetro das coxas ou descartável pelo torso mal esculpido
ou se me preferiria menos calvo ou mais, mais, mais,... Jamais faria um
implante de cabelos e a quilometragem que tenho é esta. Lia
seguramente entenderia que sou melhor agora do que já fui antes,
porque o que ela quer, com certeza, são incandescências. O
que lhe ofereço, de forma direta e crua, é o melhor vinho
dessa pipa.
Lia deixou uma limpidez no ar, que lembra o verão nas montanhas
do sul da Argentina. Suas olheiras – que imagino fundas de
luxúria e insônia – são como um personagem de filme
incrustado na memória das coisas boas. Sim, catalogo assim
minhas memórias, entre boas e más, e há muito que
as más não saem porta afora. Ficaram em seu canto,
empoeiradas e vadias, tristes com o que pensam ser descaso meu.
Guardei-as para viver melhor, porque nem sempre tive capacidade de
ação sobre seu objeto, ou força para
abatê-las. Acho que somos todos assim, meio cretinos, uns mais,
outros menos. Mas deixei-as lá para tentar enxergá-las de
outro ângulo e a vida, isso sim, me tem permitido algum sucesso
com esse jeito meio lento e meio tresloucado de enfrentá-las.
Ainda assim, o tempo tem sido capaz de oferecer respostas. Venho
juntando traços e esboços e montando
quebra-cabeças que antes não faziam qualquer sentido para
mim. Descubro que deitar elegantemente vestido na grama úmida do
pátio pode ser apenas um gesto de despreendida comunhão
entre partes de mim escondidas uma da outra. Menos rebeldia, mais
nostalgia de mim mesmo, por assim dizer.
Tenho lido o mundo com mais emoção ultimamente e isso me
faz bem. Acho que é sempre assim o fim das etapas que vencemos.
Não foram bons momentos os que passei na chuva. Mas de que me
adiantaria a secura de uma cela estreita, se lá fora estava o
mundo verdejando com o aguaceiro despejado?
Saio fortalecido. Descobri limites que não conhecia, amarras que
pensava serem fortes se desfazerem ao primeiro puxão. Descobri
forças que não julgava ter. Já não temo.
Tenho pena, às vezes, é das certezas dos outros, de suas
preocupações visivelmente auto-centradas, das
convenções. Verifico, não sem surpresa, um pouco
receio com o amanhã, que beira a coragem. O que pensava ser
sapiência inconteste daqueles que me cortavam o caminho,
mostrou-se apenas vaidade relutante. Esvaiu-se como bruma, orvalho ao
sol de abril, a minha subserviência ressentida.
Vejo a vida pela frente uma vez mais e isso é bom. E Lia precisa
saber que faz parte disto, mesmo que não saiba o porquê ou
que a sua vida já a mantenha totalmente ocupada com teses e
tesões. Não é simples compreender-nos uns e outros
e sei que ela me compreenderia, porque também eu poderia ter
assinado seu poema provocante. Isso é raro, como rara deve ser
Lia. E por isso imprescindível.
Da mesmice, sempre estive cheio.
Levo uma champanhe aqui comigo, brut como costuma ser a vida. E
espreito a curva dos trilhos, aguardando uma vez mais ver os seus olhos
- docemente escondidos em seu poema brutalmente corporal -, se
desviarem do resto e me dizerem sim. Mas temo que sejam olhos fugidios
os dela, dentre todos os que menos prezo. Porque de pouco serviria
sentir a vida fluir furiosamente, se os olhos teimam em varrer o
chão, desdizendo palavra por palavra tudo o que a boca
irresponsavelmente fabulou.