O ÓLEO DA LOIRA
por Miguel da Costa Franco
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Coisa mais nonsense: ser visitado por Dona Sônia numa manhã preguiçosa de sábado. Devia ainda estar dormindo, é certo que era sonho. Quem era a tal Dona Sônia, mesmo?

- Te levanta, Cristo! – ouviu a mãe berrar lá da cozinha uma outra vez. – Aposto que ela já está vindo!

Não se mexeu. Coisa boa uma manhã vagabunda, depois de uma noitada vagabunda, cercado de vagabundas.

Ligou o rádio, cujo dial inventara de congelar-se inapelavelmente nas alturas da Rádio Caiçara. A voz de Wando inundou o quarto com um odor de perfume barato. Enfiou-se outra vez embaixo das cobertas, camuflou a cabeleira sob o travesseiro e quis morrer. Você é luz, raio, estrela e luar... Você é faísca, fósforo, lampião, farol, lanterna, facho, archote... Você é cometa, vaga-lume, aurora boreal, incêndio, lamparina, noctiluca miliaris, isqueiro bic, pisca-pisca.

Enfiou a mão sob o calção largo e conferiu as bolas: seguiam sendo duas, meio desemparelhadas, uma mais recolhida que a outra.

- Quem mandou estudar engenharia? Agora aguenta... – ouviu a mãe gritar do outro lado da porta.

Cheirou a ponta dos dedos e pensou bobagem. Engenheiro agora tinha que atender consultas aos sábados de manhã? Quem sabe a Dona Sônia não se interessa por brincar de barco à vela matinal, ou subir aqui no meu carro alegórico, ensaiando o desfile triunfal na garagem do meu acolchoado xadrez? Sentiu avolumar-se o seu interesse por vizinhas e voltou a escorregar a mão para dentro do calção.

Ouviu movimento do lado de fora da porta, passos, risinhos, ora vejas, deixa dissos.

A porta de seu quarto escancarou-se num repente. Uma loiraça escultural preencheu o vão como se fosse um três por quatro de amador, iluminada de través.

- Tá aí a Tânia, guri, eu te avisei há horas para levantar! Vamos, vamos,...

- Deixa ele, Dona Cíntia, eu volto outra hora.

Tânia, Tânia, Tânia,... Quantas vezes a seguira desde a padaria ou pensara puxar conversa no Ipiranga-Sabará! Quantas vezes acompanhara sorrateiro os movimentos do seu quadril, descendo a rua suave e balouçante como se fora uma charrete com rodado de pneu.

- Oi – arriscou ela, desde a porta. – Eu só queria saber como se troca o óleo... Eu nunca fiz...

Salgado petrificou-se no berço, a meia ereção agora já tornando impossível erguer-se com um mínimo de elegância.

- Já tentou o manual?... Na primeira vez, é sempre bom ter à mão o manual... - balbuciou, hipnotizado pela loiraça, enquanto pensava safada, safada, tá me testando.

E estendeu-lhe a mão para distraí-la, enquanto procurava sentar-se, embolando o cobertor sobre o calção vermelho, três listras brancas na lateral. Por sorte, vestia o seu preferido, imitação da adidas.

- Tua mão está quente – disse Tânia, surpresa por dizê-lo, as bochechas em fogo.

- Lubrax-4, Lubrax-4... – foi tudo que ocorreu ao Salgado responder-lhe, enquanto reafirmava para si mesmo, safada, safada, tá me provocando.

Tânia ficou olhando o perfil adunco de Salgado contra o fundo iluminado da veneziana.

- Tu é meio parecido com o Dom Quixote... – pensou alto.

- O óleo nós podemos comprar no Carrefour... – emendou Salgado, enquanto via aterrorizado a loirosa levar ao nariz os dedos da mão que o cumprimentara.

- Esse outro cara eu não conheço – disse, torcendo para que o Lubrax-4 ainda estivesse em linha de fabricação.

- Dom Quixote, o dos moinhos de vento, da Dulcinéia, do Sancho Pança – explicou a Tânia, estranhando o cheiro de mar que trazia nos dedos.

- Minha vida é aqui no Sabará, Jardim Ipiranga, Vila Jardim... muito mais eu não conheço. Se tu me esperar na sala, já me visto. Ou vais querer trocar o óleo aqui mesmo? – insinuou-se.

- Eu não queria te tirar da cama...

- Se eu soubesse nem me levantava... – falou Salgado, entre sorrisos, marotos sorrisos, pensando mas que safada!.

- Sem levantar, não ias poder trocar o óleo – raciocinou a Tânia, os olhos em arco.

Safada, safada, levantar o quê, cara-pálida? pensou Salgado, outra vez.

- Já estava de pé quando tu chegaste! – tentou recuperar-se, a mão outra vez juntando as bolas sob o cobertor, e escorrendo depois para o membro meia-bomba, quem ela estava pensando que ele era?

- Não me pareceu! - desdenhou a Tânia, olhando longamente para a cama desarrumada, o quarto escurecido, o rádio que agora tocava Feelings.

- Quem nunca trocou o óleo não percebe certas coisas. Acho que não olhaste direito! – empertigou-se Salgado, achando que era hora de mostrar-lhe o que escondia por sob o cobertor.

- Mas que coisa, guri, tu ainda estás aí enroscado nessa cama, deixando a Taninha esperar... Que fedor, esse teu quarto!... Vem cá, querida, vou te dar um café enquanto esse troncho se ajeita. ... Lindo, o teu Chevette...

- É... – ouviu a loiraça dizer, enquanto saía. - E a Dona Sônia, por que não veio?

- Ela já está meio velhinha, coitada. Só me disse para vir aqui, que o Salgado quebrava o meu galho. Preciso trocar o óleo, sabe?

Minha mãe sempre estragando os lances, pensou Salgado, enquanto se levantava, o membro bruscamente emurchecido parecendo uma rolha de champanhe caída de lado, dentro do calçãozinho grená.

Safada, safada, um dia ainda vou trocar esse teu óleo. Nem que seja nos confins dos Andes, nem que eu tenha que enfrentar os escorpiões do Deserto de Atacama, nem que eu tenha que pagar o mico de queimar as bolas sob o sol escaldante do verão nas altitudes da Argentina, nem que eu tenha que aguentar a tua confraria de amigos metidos a sabichões, nem que...

- Anda, Salgado, vai trocar o óleo da moça! – ouviu sua mãe ordenar, impaciente.

O rádio agora inventava maravilhas sobre um tal de Capiloton, o protetor do seu penteado. Nunca iria precisar disso, riu-se sozinho, afagando a basta cabeleira.

Só então ele foi.