escutar o dentro / ver o fora
por Isadora Franco

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parar
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respirar
(aproveita se não pegou covid-19 para respirar plenamente)
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esse surto pandêmico veio como um basta ao ritmo desenfreado da modernidade. fomos convocados a recuar e nos confrontar com as debilidades daquilo a que chamamos normalidade. fomos convocados a reinventar o nosso dia-a-dia, a repensar nossa maneira de viver, mas ainda assim parece que não entramos em reflexões mais profundas sobre o que significa realmente viver em um contexto sustentável de saúde para todos. há muito de não saudável nessa realidade dita normal, que mais parece surreal do que qualquer outra coisa, e há muito de não saudável nessa realidade a qual tivemos que nos adaptar. nos adaptamos porque essa é a natureza de tudo que é vivo. mas será que todas as adaptações valem a pena?

falei de uma realidade que seria comum a todos, mas quantas são as realidades que verdadeiramente existem? cada um está constantemente criando a sua própria realidade, através dos muitos filtros que nutrem a forma como percebemos e apreendemos o mundo. num país tão desigual, que gera situações de vida tão brutalmente diferentes, essa ilusão de que partilhamos uma mesma realidade é absurda. os algoritmos nas redes sociais materializaram e intensificaram esse recorte perceptivo que nossas mentes são capazes de produzir por si. cada um tem acesso a uma realidade virtual restrita, cada um tem acesso a sua realidade circunstancial restrita. esse é o poder da percepção, que já é esse processo de absorção distorcido, que transfigura a informação no momento em que a absorvemos, esse misto de sentir com interpretar, que mistura o mundo interior com o exterior, e constrói uma nova visão sobre a realidade. perceber é ver com os filtros de tudo aquilo que nos constitui, esse ver através do seu autêntico e possível ponto de vista.

e pode ser fantástica a diversidade de percepções possíveis sobre uma mesma coisa, como tão opostas que chegam a ser conflitantes. em meio à crise da informação que estamos vivendo com o fenômeno das fake news, que já estava grave com a polarização acirrada de visões políticas, nesse período de confinamento absorver o mundo através da informação digital, se tornou a única forma possível. sem estarmos expostos a complexidade da vida no mundo, as nossas percepções vão ficando fragilizadas e mexidas, nossos inconscientes, uma bagunça total. como será quando estivermos novamente corpo a corpo com aqueles que pensam antagonicamente a nós? quantos afetos ficaram reclusos nesta quarentena? não sabemos mais em que acreditar. isso traz uma insegurança psíquica feroz que acaba por se disfarçar de opiniões radicais, abrindo espaço para manipulações de proporções assustadoras. e para sossegar essa fera, me percebi formiga, e tratei eu de fazer uma limpeza profunda no meu inconsciente. para reencontrar os redutos onde moram as coisas que eu acredito, as minhas verdades particulares, para me estruturar a partir dali, tratando de confiar no que sinto e tentar manter a minha capacidade de lucidez bem desperta.

no micro processo de adaptação que coube a mim, senti a necessidade de fazer um movimento claro em direção a minha sanidade e me deparei escancaradamente com a psicanálise e com "a arte salva". o ato de expressar, já é um ato de criação. criar é dar vazão àquilo que nosso corpo não comporta mais, é transbordar um pouco de si na realidade que partilhamos.

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e entre as paredes da minha casa, eu queria transbordar. desejava inventar alguma coisa que pudesse servir para além de mim. algo que pudesse me ajudar, mas que também ajudasse outros, a compreender melhor o íntimo de si mesmos. algo que fosse permeado por uma aura terapêutica, mas que não fosse terapia, que cultivasse uma certa magia da vida, mas que não fosse engambelação, que fosse artístico, dotado de criatividade e de uma linguagem poética que materializasse o meu imaginário e que fosse capaz de provocar o imaginário dos outros. me veio então a ideia de criar um tarô com cartas feitas de colagens. quando cheguei a 36 cartas, inventei um jeito de jogá-las, criei um nome ~ Tarot Espelho ~ e comecei a convidar amigos para jogar. era uma forma de ter um contato humano um pouco mais profundo através da bidimensionalidade da tela, e de dialogar diretamente com o inconsciente, de clarear pensamentos, desejos e intenções, de aliviar inquietações ou provocar mais questões. estimular a autoregulação e a autoinvestigação como processo de manutenção da própria saúde, para incentivar que cada um encontre em si as respostas que procura. no Tarot-Espelho, as cartas não tem nome, número, nem significado próprio como em outros tarôs, o que me interessa é o que o outro vê nas cartas, os significados e sentidos que a outra pessoa cria a partir da sua percepção. é um jogo de escuta e livre associação. eu tento ser o mais fiel possível ao escutar o outro, para depois poder espelhar o que foi dito, dando a possibilidade para a pessoa se "ouvir de fora", se deslocando e se percebendo por outro ângulo. acredito muito no potencial transformador das relações e do acolhimento, acho que toda relação espelha algo de nós, e é essa ideia que eu tento trazer pra esse jogo. uma forma lúdica de refrescar a cuca e de desatar ou atar uns nós. acabei encontrando na linguagem do tarô essa ferramenta micropolítica, poética e afetiva, em que as formas como nos relacionamos se revelam.

do macro ao micro
do fragmento à totalidade
tarô como metáfora do jogo da vida

eu sou todo baralho ao mesmo tempo,
e a cada momento me vejo apenas em uma ou duas cartas
meus humores oscilam
aguçar a percepção para esses trânsitos sutis
deixar o alvoroço afetivo ferver
sem causar tanto estranhamento...

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Isadora Franco é baliarina, formada pela Escola de Dança Angel Vianna (Rio de Janeiro) e Performact (Portugal).