Não jornalismo
por Jorge Furtado
30/10/2020


A última vez que escrevi para o NÃO foi em 19 de janeiro de 2006, na edição 82. Meu texto se chamava "O FALSO PICASSO FALSO ou Jornalismo: faça você mesmo". [1] Este texto serviu de ponto de partida para o meu filme "O Mercado de Notícias" [2], onde a história de uma reprodução de Picasso aparece como caso exemplar de notícia falsa, aquilo que nos anos seguintes receberia, em português, o nome de fake news. [3]

Em 2014 a Folha de São Paulo publicou um "Erramos", 10 anos depois, citando o filme:

"A Folha corrige nesta edição uma informação publicada há dez anos. Em março de 2004, o jornal noticiou, com destaque na "Primeira Página", que havia um quadro do artista espanhol Pablo Picasso (1881-1973) pendurado em uma das salas da direção do INSS (Instituto Nacional de Seguro Social) em Brasília. O assunto voltou à tona agora, com o lançamento de "Mercado de Notícias", do cineasta Jorge Furtado. Um trecho do filme mostra o equívoco cometido pela Folha e por outros veículos de imprensa. "Trata-se apenas de uma reprodução autografada", diz Francisco Orru de Azevedo, que, à época responsável pela recomposição do acervo histórico e cultural do INSS, é citado na matéria de 2004. [4]

Em 2006, quando eu escrevi aquele texto, Lula era reeleito presidente, o Brasil estava bombando, as redes sociais engatinhavam. A imprensa corporativa - isto é, os veículos de jornalismo dos grandes grupos de comunicação e negócios - abandonou critérios jornalísticos básicos para praticar oposição partidária, uma opção que foi admitida abertamente em 2010 pela presidente da Associação Nacional dos Jornais e executiva do jornal Folha de S. Paulo, Maria Judith Brito, em entrevista ao jornal O Globo: "Obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada." [5]

Jornalistas de plantão na porta dos juízes, dos procuradores, políticos, advogados e homens de negócios, tornaram-se garotos de recados, reproduzindo supostas informações com pouca ou nenhuma apuração jornalística, num campeonato de vazamentos e moralismo fajuto que varreu o país, a partir do lavajatismo curitibano, personificado pelo ex-juiz e futuro ministro bolsonarista Sergio Moro.

Exatamente quando a imprensa deixava de cumprir sua função (que é buscar a verdade) e resolvia agir como partido político (que busca o poder), surgiam as grandes redes sociais, facebook, twitter, whatsapp. E de repente os pomposos editoriais dos jornalões passaram a ter menos importância que o áudio da mãe daquela colega de vôlei, que garante que o filho do Lula é dono da Friboi.

Depois das fakenews, a pós-verdade. Depois da pós-verdade, o "quem se importa"? A elite rentista, obcecada em derrotar Lula e eleger um representante do tucanato, acabou ferindo de morte a política partidária e o jornalismo, abrindo espaço para o que há de pior da vida pública nacional: milicianos corruptos, falsos pastores, viúvas de torturadores, vigaristas e debilóides.

Hoje o presidente é um imbecil psicopata, que não poderia participar de um debate ou entrevista com adultos sem ser ridicularizado, que ofende a imprensa, humilha jornalistas, persegue os veículos que teimam em fazer jornalismo, governa pelo twitter e por lives no youtube, dá declarações homofóbicas e pede desculpas se "a reação das redes" for negativa, mente e nega a realidade com a maior cara dura, pouco se lixando para o que diz "a mídia".

Felizmente, entre os escombros do que foi a antiga imprensa, nascem todo tipo de podcasts, blogs, sites, grupos, coletivos de jornalistas que tem como tarefa buscar a verdade. Como ensinou Jânio de Freitas, "o jornalismo depende dos jornalistas". Por isso o jornalismo sobreviverá. Sempre haverá alguém que, confrontado com a prepotência dos poderosos e com o elogio à ignorância, estará disposto a dizer "Não".

***

[1] Texto publicado no Não em 19.01.2006
http://www.nao-til.com.br/nao-82/picasso.htm

[2] Site do filme
http://www.omercadodenoticias.com.br

[3] Trecho do documentário "O Mercado de Notícias"
https://www.youtube.com/watch?v=sxojkBddWSo

[4] Erramos da Folha
https://m.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/08/1498399-folha-corrige-informacao-de-2004-citada-em-filme-sobre-jornalismo.shtml

[5] Texto sobre a declaração da presidente da ANJ
http://www.casacinepoa.com.br/o-blog/jorge-furtado/antiga-imprensa-enfim-assume-ser-um-partido



Jorge Furtado é cineasta ("Ilha das flores", 1989; "O homem que copiava", 2003; "Rasga coração", 2018; etc.) e autor de televisão ("A comédia da vida privada", 1995-96; "Doce de mãe", 2014; "Sob pressão, 2017-20; e muitos outros). Foi o inventor da segunda geração do Não.