Latão livre!
por Matheus Piccoli


Quando o Giba me convidou pra escrever uma contribuição para a NÃO!, comecei a pensar em alguma coisa que fizesse sentido ser compartilhada. Teria que ter humor, mas também precisaria ter alguma coisa que valesse o registro histórico, tudo isso ao mesmo tempo que curto. Lembrei de um ocorrido que me aconteceu em 2018 e que registrei numa caderneta, o qual transcrevo pra cá:

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15 de maio de 2018

É véspera de meu aniversário e minha mãe veio me perguntar o que eu gostaria de ganhar como presente. Naquele dia aconteceria o show do Buena Vista Social Club, grupo cubano incrível, com participação de Omara Portuondo. Por sorte, ainda havia dois lugares em todo o Araújo Vianna. Foi o que pedi e me fui sozinho ao show, aproveitar minha companhia. Tudo estava para começar quando, antes de entrar, resolvi comprar uma cerveja de um dos ambulantes. O primeiro que vi já foi me chamando pra perto, e perguntei quanto era a Heineken. "Garrafa ou lata?", ele questionou; "Garrafa", respondi; "Garrafa é dez". Agradeci e me virei, mas ele insistiu e baixou o preço para R$ 8,00. Não era lá um desconto atrativo, e eu ainda corria o risco de pegar uma cerveja quente. Agradeci mais uma vez e disse: "Vamos ver se tu me faz por oito mesmo" e me virei, no que o ambulante gritou: "Tem latão também!". Comecei a achar graça da insistência e resolvi sacanear o rapaz. Me voltei a ele, já rindo, e perguntei se o latão era de Heineken, que por óbvio não era, pois não existe latão de Heineken (ainda). "Sim", disse ele. Com certeza agora eu iria ficar, só para ver como ele ia se sair dessa, e me aproximei. Ele mexendo no isopor, e eu: "Latão de Heineken eu nunca vi". Então, ele tirou uma lata normal e me alcançou. Comecei a rir: "Isso não é um latão". Nisso, ele se aproximou, abaixou o tom de voz, e disse: "É, mas dá pra fazer por seis". Gênio! Mago da negociação! Mestre da oratória e performance. A cerveja, como eu suspeitava, não estava tão gelada, mas o modo como ele me pescou e não desistiu foi tão genuíno, tão bem executado, que não tive outra escolha a não ser comprar a cerveja como recompensa ao esforço do rapaz. O show foi ótimo. Vi Omara Portuondo com meus próprios olhos; rolaram gritos de LULA LIVRE! (aliás, hoje o TRF-4 decretou a soltura dele); mas o que ficou foi a lição do ambulante, brasileiro, que não desiste nunca.

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Esta história me aconteceu na primeira metade de 2018, um momento onde podíamos ir à shows presenciais, sozinhos ou NÃO; o dólar custava R$ 3,83 com o final do Golpe; a ANCINE funcionava; o Brasil não tinha Bolsonaro no poder (embora a esmagadora maioria de vaias aos músicos cubanos em seu próprio show por terem apoiado o LULA LIVRE era o prenúncio do que viria se concretizar em outubro); e ainda havia esperança na balbúrdia, mas não havia latão de Heineken (que, hoje, custa R$ 8,00 no mercadinho).



Matheus Piccoli é cineasta gaúcho que divide seu tempo entre montar filmes, produzir games, ouvir muita música, entrar em vórtex de pesquisas aleatórias na internet, e xingar a zaga do Colorado.