Em nome da misturança,
ou como um sax pode entrar numa banda punk
por Carlos Gerbase


No final de 1983, quando Os Replicantes, que nem tinham ainda esse nome, começaram a ensaiar numa garagem da rua Marquês do Pombal, eu e os irmãos Heron e Cláudio Heinz tínhamos um objetivo: aprender a tocar um instrumento e, se possível, fazer música. Pouco depois, o Wander Wildner (voz) e a Luciana Tomasi (teclado) entraram na brincadeira. O fato de abraçarmos a estética do punk rock foi uma mistura de coincidência histórica (o punk e suas derivações começava a aparecer em Porto Alegre, graças ao primeiro LP do Camisa de Vênus e aos muitos discos emprestados pelo Gordo Miranda), funcionalidade estética (uma música bem simples, com dois ou três acordes, era ideal para músicos iniciantes) e admiração pela vigorosa poética anarquista do punk inglês (em especial Sex Pistols e Clash). Nós éramos de classe média, estávamos começando nossas vidas profissionais fora da música e tínhamos pouco dinheiro. Com certeza não pertencíamos ao operariado brasileiro, como acontecia com o punk paulista, que fazia música de protesto bem explícita contra o "sistema", e nem tínhamos saco pra incorporar plenamente os figurinos e os cabelos estilosos dos punks e pós-punks londrinos e nova-iorquinos. Nós fizemos uma misturança. Batidas minimalistas na bateria, baixo e guitarra sem grandes firulas e letras que, mesmo sendo políticas, tinham mais a ver com o cotidiano da juventude porto-alegrense que com os artistas revolucionários das grandes metrópoles. Figurinos nos shows? Os mesmos que usávamos pra trabalhar e estudar. Cabelos? Cada um por si. Instrumentos? Os que podíamos comprar ou pedir emprestado. Além disso, havia doses bem grandes de fantasia e ficção-científica nas canções dos Replicantes, tanto que assumir o nome dos androides do filme "Blade Runner" (1982) foi bem fácil e natural. Uma das nossas primeiras músicas é "Vortex" (1984), inspirada numa máquina de Pinball e, indiretamente, no filme "Zardoz" (1974). Mas esse negócio de usar fantasias futuristas nas letras era coisa do rock progressivo. Portanto, não éramos uma banda "típica" de punk rock. Longe disso. Éramos garotos procurando nossa expressão a partir do que conhecíamos e do que gostávamos. Não éramos integrantes, muito menos líderes, de um "movimento" estético ou político, apesar de rapidamente sermos vistos como tal, inclusive por uma banda clássica de punk rock paulista, o "Cólera", de quem ficamos amigos. Tínhamos independência. E por isso tínhamos liberdade para criar. E misturar. Nada de "pureza". Gostávamos de nos apropriar e depois transmutar. Nada de novo. O tropicalismo (admirávamos os Mutantes!) era antropofágico. Em 1983, havia duas bandas de rock muito ativas em Porto Alegre: Garotos da Rua e Taranatiriça. Na primeira, de rock setentista, com evidentes influências dos Rolling Stones, havia o sax de Ricardo Cordeiro, hoje conhecido como King Jim. Ele era amigo de infância dos irmãos Heinz e meu conhecido (e da Luli) há alguns anos. Era natural que, mesmo sem intimidade com o punk, o Ricardo participasse da nossa aventura musical. Punk com teclado e sax! Por que não? Quando gravamos o compacto, ele fez backing-vocals em duas músicas. Quando produzimos o LP "Papel de Mau", colocou sax na música
"Minha Vizinha". No LP "Androides sonham com guitarras elétricas", já como o quinto Replicante (está na foto do disco), participou de sete das 10 músicas, além de acompanhar a banda em inúmeros shows. Num espetáculo no Porto de Elis, disponível no Youtube, é fácil perceber o quanto o sax de King Jim foi importantes nessa fase dos Replicantes pós-Wander Wildner. Como se não bastasse, King Jim ainda estava ao nosso lado quando gravamos a trilha do curta "O corpo de Flávia". Escrevo esse texto nostálgico, para esse Não nostálgico, imerso nessa pandemia que, espero, seja uma coisa nostálgica o mais rápido possível, para, em primeiro lugar, exaltar o talento do meu amigo King Jim, colaborador histórico do Não e dos Replicantes, hoje cantando e tocando na sensacional banda "Los 3 Plantados". Em segundo lugar, aproveito para dizer que vivemos tempos muito angustiantes na política brasileira e mundial. Acho que tudo seria mais fácil (e menos assustador) se a gente aumentasse nossa capacidade de examinar diferentes propostas políticas do campo da esquerda, que têm sutilezas programáticas às vezes irrelevantes para os cidadãos e cidadãs que votam, e formar um consenso estratégico para esse período. E perder esse sentimento de "pureza" de intenções, como se só a "minha turma" fosse a verdadeira guardiã da democracia e a grande paladina nas lutas que interessam à sociedade brasileira. Enfim, por mais misturança, por mais sax no punk rock e por mais reis como King Jim.





Carlos Gerbase é cineasta ("Tolerância", 2000; "Sal de prata", 2005; "Bio", 2017; entre outros), escritor ("Professores", 2006; "Todos morrem no fim", 2012; etc.), músico (foi baterista e vocalista da banda "Os Replicantes") e professor. É colaborador do Não desde a primeira geração.