Para quem a morte diz não
por Giordano Gio


Escrevo esse parágrafo no Dia de Finados no ano de 2020, um ano cheio de finados. Com essa efeméride, que coincide com notícias de familiares próximos infectados por COVID-19, sou levado à dúvida involuntária se estou preparado ou não para determinadas despedidas, mesmo que elas não venham a acontecer nesse momento.

Infelizmente eu não consigo, nesse momento, escrever sobre outro assunto que não este. A morte é e sempre foi um dos temas essenciais dos objetos aos quais atribuímos valor de arte, das máscaras mortuárias às fotografias espíritas. Num ano marcado por ócio e desemprego, se há duas ocupações que certamente estão com mais demanda durante a pandemia são as de entregadores de aplicativos e a de psicopompos, as entidades místicas responsáveis pela transição das almas humanas de um plano para outro.

Essa segunda ocupação, para ser levada em conta, exige como pré-requisito que, ao menos, acreditemos no conceito de alma, o que está longe de ser uma unanimidade. Enquanto os corvos, ceifadores, barqueiros e homens com cabeça de cão dividem a enorme demanda entre si, nós seguimos nos deparando com "memento mori", lembretes de que somos mortais, a cada minuto, a cada acesso às redes sociais, a cada vez que ligamos a televisão, a cada vez que vemos o meme dos "dançarinos dos caixões", popular no início da quarentena, e a cada banho de álcool a que submetemos à batata palha comprada no supermercado. Para os que tem o privilégio de sobreviver à peste, há uma constante sensação da morte estar à espreita, sem que ela necessariamente chegue. Os alemães devem ter alguma palavra para descrever esse exato sentimento.

Num mesmo fim de semana, assisti coincidentemente dois filmes estadunidenses muito diferentes entre si, e que me levaram a pensar nisso num sentido mais literal. O documentário "Dick Johhnson is Dead", traduzido pelo Netflix como "As Mortes de Dick Johnson", dirigido pela renomada documentarista Kirsten Johnson, e o pequeno filme de horror "She Dies Tomorrow", dirigido por Amy Seimetz.

No primeiro, a diretora do filme, filha do personagem do título, encena várias mortes de seu pai, o Dick do título, ao longo de alguns anos, enquanto acompanha a piora da senilidade de seu progenitor. O pai, um psiquiatra muito carismático, parece entender a importância daquele processo de luto antecipado para a filha, e ao mesmo tempo em que parece se divertir com as encenações, parece notar uma nuvem cada vez mais espessa de melancolia naquela brincadeira mórbida. Segundo o filme, na fé do personagem, Adventista do Sétimo Dia, parece não haver vida após à morte imediata, e sim uma longa e tediosa espera pelo juízo final, o que numa narrativa seria um frustrante anticlímax. Parece que o Dick Johnson segue vivo, após todas essas encenações de morte e ensaios de luto. Me pergunto se a filha, a diretora, está agora mais preparada para o fim, ou apenas possui uma compreensão diferente de tudo o que o precede.

O outro filme, o de horror, que teve uma circulação bastante nichada, tanto pela restrição da cadeia exibidora esse ano quanto pela estética nada comercial que oferece, fala de um tipo muito curioso de epidemia. Somos apresentados a uma personagem que tem a certeza absoluta e irracional de que morrerá no dia seguinte, sem qualquer indício em relação à forma como acontecerá. A rede familiar e de amigos tenta fazê-la enxergar que isso não faz sentido, mas há um agravante: a sensação é contagiosa. Aos poucos, há vários personagens experimentando a insólita certeza de que morrerão amanhã, o que é ao mesmo tempo tragicômico e muito desconfortante.

Os dois filmes, de modos muito diferentes, falam sobre personagens lidando com a eminência de uma morte que não chega a acontecer. E isso ressignifica não o olhar que os personagens tem sobre a morte, mas sobre o que a precede, e o que se sucede a essa não-morte. Em tempos de pandemia (expressão que ninguém mais aguenta), sem saber ao certo quantos e quais de nós estarão aí para quando houver a vacina, nem quantos de nós conseguirão passar pela peste ilesos sem se despedir de alguém próximo, os dois filmes me fazem pensar no que restará para aqueles a quem os psicopompos dizem não.



Giordano Gio é roteirista, diretor e historiador da arte. Formado em Realização Audiovisual pela UNISINOS, Mestre em História, Teoria e Crítica de Arte pela UFRGS, atualmente doutorando na mesma área. Sócio-fundador da Fehorama Filmes, produtora através da qual vem desenvolvendo seus projetos como diretor, roteirista e produtor.