Porque há 22 anos um grupo de bravos jovens portoalegrenses (1) resolveu editar um jornalzinho hiper alternativo chamado "Não", expondo ao mundo - um exemplar, manuscrito, que circulava de mão em mão - o seu descontentamento, sua raiva, suas paixões, sua intolerável adolescência. Gritavam contra a burrice, a opressão das elites, o monopólio da informação, a pasmaceira geral.
A burrice não recuou. Ao contrário, ganhou espaço e tomou conta da mídia (2). Hoje qualquer idiota pode ter ser próprio programa de televisão. Aliás, quanto mais idiota mais chance ele tem de ter um programa de televisão. Tem canal exclusivo de cabo transmitindo vendas de tapetes, arremesso de porco e campeonato de par ou ímpar. A única lógica é a da audiência. Livre mercado é o Tirica de sunga na banheira com uma modelo de biquini lutando por um sabonete. No outro canal, atores de novela comem peixe cru sobre a barriga de uma modelo, ao que se sabe, igualmente crua. A Globo anuncia no domingo à tarde um campeonato de "maior bumbum" do Brasil (3). No SBT, o dono da emissora faz aviõezinhos de dinheiro e joga para o público(4). Humilhar pobres dá uma grana boa, 26 de ibope. A inserção comercial de 30 segundos em rede nacional no "Topa-Tudo por Dinheiro" custa 43 mil reais. Silvio Santos leva um minuto para atirar quinhentos reais aos pobres. Nem os precatórios de Santa Catarina remuneram tão bem.
A opressão das elites tomou forma institucional e cristalizou-se. O próprio presidente-sociólogo admite que o modelo brasileiro pressupõe a existência de uma massa de excluídos. ''Provavelmente, na dinâmica atual, não há força para incorporar todo mundo'', disse o príncipe em entrevista ao Roda Viva. Um conformismo que ajuda agravar a brutal concentração de renda brasileira. Os 10% mais ricos do país ficam com 48,2% da renda nacional. Os 40% mais pobres têm que se contentar com 8,95%. Apenas a Guatemala apresenta índice pior. No Rio Grande do Sul, as elites se articularam de maneira inédita, unindo o velho MDB com a velha Arena, a velha RBS - inclusive com o velho Zambiazi - tudo num mesmo saco. Estão vendendo o estado para eles mesmos e dando dinheiro público de presente para as indústrias multinacionais do fumo, do álcool e dos automóveis, pagando 300 mil reais por emprego criado. O massacre da classe média ampliou o fosso entre os donos do poder e os excluídos. Enquanto isso, em Patópolis, uma oposição perdida em conflitos internos, dúvidas existenciais e batalhas de ego apresenta como alternativas para o futuro do país, Lula, Sarney, Itamar ou Maluf.
O monopólio da informação se agravou. Na época, Porto Alegre tinha seis jornais diários: Correio, Zero Hora, Diário de Notícias, Jornal do Comércio, Folha da Manhã e da Tarde. Três desapareceram, o Correio encolheu, o JC - cada vez mais reacionário - continua circulando quase que exclusivamente em repartições públicas. A Zero Hora é a voz do dono, virou diário oficial do estado. As alternativas que surgiram nestes 22 anos - como o Diário do Sul - foram sufocadas.
A pasmaceira geral também segue firme e forte.
Porque a gente quer dar espaço para os que são contra quem tem poder demais: a RBS - dona da tevê, do rádio, do telefone, do shopping, do governador, das construtoras; a Globo - dona das novelas, da NEC, do FHC, do ACM, do Sarney e do Collor; o PT, dono da cidade e da oposição; a FIFA, os bancos, os bicheiros, as construtoras, as várias igrejas. Quem mais?
Porque é impossível ter um endereço na internet com til. Nós não agüentamos mais essa jequice de loja, bar, restaurante, butique, roupa e o escambau com nome em inglês. Não existe nada mais imbecil (5) que aquele comercial do Tempra onde uns executivos fazem uma reunião dentro do carro e, na hora de terminar a reunião, o motorista afrouxa a gravata e diz que agora "está na hora do happy hour". A hora do happy hour? Os caras gastam milhões para fazer um filminho de 30 segundo, levam seis meses filmando e montando e são incapazes de escrever uma frase que tenha sentido. São os analfabetos bilíngües.
Porque a gente não agüenta mais ganhar dinheiro e pagar imposto. Um destes dois sofrimentos tem que acabar! Só otários assalariados pagam imposto de renda no país. Grandes empresas, as universidades em obras (6), os veículos de comunicação, o Collor, o Edmundo, as igrejas (7), o Ronaldinho, o Paulo Nunes, não pagam. Empresários botam de tudo, dos carros às gravatas, no nome da empresa. Tem gente comprando o chopp da festa de fim de ano da firma com verba da lei do audiovisual (8).
Porque quase todo mundo está dizendo sim. Para a globalização e o Mercosul, para o Fernando Henrique, para o renascimento do cinema brasileiro, para o Britto, para o Raul Pont, para a RBS e a Globo. Não dá mais para agüentar a puxação de saco geral.
Porque é muito cômodo escrever a favor mas é muito mais divertido - e transformador - ler contra.
Porque sempre se tem vinte anos em cada perna em algum canto do coração.
Porque sim.
(1) Giba Assis Brasil, Ricardo Cordeiro, Heron Heinz, Carlos Gerbase, Nelson Nadotti, Álvaro Magalhães... Quem mais?
(2) Senhora de falar estridente, reputação duvidosa e pouca roupa. Uma anagnosta.
(3) Bunda pode mostrar mas não pode dizer, o que reafirma a supremacia da literatura sobre o cinema.
(4) Uma versão do quadro com adolescentes nuas na lama está sendo estudada.
(6) A PUC está em obras desde a inauguração, há trinta anos.
(7) Vocês sabiam que igrejas não pagam imposto de renda? Deus está dando mais dinheiro que prostituição e tráfico de drogas!
(8) Dinheiro de isenção fiscal é dinheiro público. Ou não?