CHAME O JUIZ DE LADRÃO E DEPOIS DIGA QUE NÃO
ou OS ALICERCES DA MORAL HANS
por Carlos Gerbase
(gremista, mas imparcial)
 

O mais importante assunto do segundo semestre de 97 foi, sem dúvida alguma, o julgamento do atleta Xristian, do S.C.I., que decretou profundas alterações no panorama do futebol em nosso país.

Resumindo o caso: Xristian foi expulso por ter dado uma porrada num adversário por trás. Na súmula, o juiz escreveu que, depois de expulso, o atleta ainda o xingou e disse "Você não apita mais jogo do S.C.I.". Baseado na súmula, o auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da CBF denunciou Xristian por agressão a jogador adversário e por desacato ao juiz. Até aí, tudo normal. O Departamento Jurídico do S.C.I. passou duas semanas dizendo que ia ser muito difícil defender Xristian e que as possibilidades de condenação eram muito grandes. Aí aqui, tudo mais normal ainda. Esses rábulas adoram dizer que será impossível para depois: (a)não serem criticados caso não consigam porra nenhuma; ou (b)serem considerados gênios por uma vitória consagradora. Como diria nosso Prefeito (torcedor do S.C.I.), "conversa de advogado".

Mas o que aconteceu, negadinha, (e ninguém me contou, eu ouvi da boca dos próprios juízes) implica numa revolução das regras do futebol (e, por conseqüência das relações sociais), muito mais importante, por exemplo, que a eventual abolição do impedimento. O Departamento Jurídico do S.C.I. levou para o julgamento o atleta Anderson. Anderson afirmou o seguinte: "Xristian, depois de expulso, não xingou o juiz. Ele simplesmente saiu de campo." Que maravilhoso depoimento! O centro-médio do S.C.I. defendendo o centro-avante do S.C.I.. Comovente. Como não havia, no julgamento, uma gravação de áudio do momento da expulsão (havia uma de vídeo, que não prova nada a favor nem contra, muito antes pelo contrário), a decisão dos senhores auditores seria baseada em duas afirmações contraditórias: uma do juiz da partida, indicado pela CBF e responsável em aplicar honestamente as regras do jogo; e uma do atleta Anderson, colocado em campo pelo S.C.I. para vencer a partida (ao lado de seu companheiro Xristian).

E então, num momento solene para o Brasil, um dos auditores disse o seguinte: "Acho muito estranho o juiz da partida ter escrito na súmula que o atleta Xristian disse 'Você não apita mais jogo do S.C.I.', porque o atleta Xristian é gaúcho, não usa o termo 'você'." E arrematou: "NÃO TENHO PORQUE DUVIDAR DA PALAVRA DO ATLETA ANDERSON. Sendo assim, absolvo Xristian da acusação de desacato." Quando ouvi o voto desse senhor (óbvio portador de doença mental), pensei que ele seria devidamente ridicularizado pelos demais auditores. Mas estes não disseram coisas muito diferentes. E Xristian foi absolvido da acusação de desacato, na decisão jurídica mais importante do século.

Ora, o que podemos deduzir daí? A partir desse momento, a palavra do juiz da partida vale MENOS do que a palavra de um jogador. Por exemplo: Xristian faz um gol com a mão; o juiz apita e anula o gol; Xristian diz que foi com a cabeça; o Tribunal julga e, obviamente, diz que foi gol, alterando o placar da partida. Como isso vai dar muita incomodação, e a torcida não vai entender qual é o placar do jogo que está valendo de verdade, os auditores estarão presentes no estádio. A cada lance polêmico, eles ouvirão os jogadores e decidirão o que fazer. É claro que os jogadores do outro time vão dizer que o gol foi com a mão. Serão julgamentos difíceis, emocionantes, que vão durar horas e exigir equipes de onze advogados para cada time. Já posso ver os lances espetaculares: "Data venia!", chuta um; "Delenda Cartago", contra-ataca o outro. E a torcida ali, ansiosa, gritando sem parar: "Usa o álibi! Usa o álibi! Usa o álibi!"

Estou exagerando? Não. Não. Não. Foi aberto um precedente de conseqüências ontológicas. A sociedade não será mais a mesma. Terei de revisar (e reciclar) a educação das minhas filhas, para que elas saibam como enfrentar essa nova ética, que, neste solene momento, num "insight" digno de José Pedro Goulart, batizo de "Moral Hans".

Por quê "Moral Hans"? Ora, quem é o autor das mais manjadas histórias infantis de todos os tempos? Hans Christian Anderson. CHRISTIAN ANDERSON! Pelamordedeus! E depois não querem que as pessoas vejam a perfeita sincronicidade entre o disco "The Dark Side of the Moon", do Pink Floyd, e o filme "O mágico de Oz". E depois não querem que as crianças acreditem no lobo mau, na bruxa malvada e no bom caráter do Edmundo.

Se o S.C.I. ganhar o Campeonato Brasileiro, com gol de Xristian, estará decretada a falência de tudo o que nos ensinaram Platão, Sócrates e Aristóteles. Estará concretizada a mais espetacular reviravolta moral da humanidade. Enfim, será uma derrocada dos valores tradicionais e a ascensão irresistível da "Moral Hans". É hora de uma corrente dos cidadãos que ainda acreditam num mundo ético, independente de partido político ou paixão clubística. Convoco os próprios torcedores do S.C.I. para essa cruzada, principalmente os meus amigos Giba, Plínio, Heron e Ricardo Cordeiro, todos colaboradores deste jornal que sempre defenderam a Justiça acima de tudo. Vamos dar as mãos, pessoal, e acabar com a bandalheira. Vamos amarrar de novo o cavalo no obelisco e mandar os auditores da CBF para apitar um jogo em São Januário. Vamos, enfim, construir um mundo melhor para nossos filhos, netos e bisnetos. Vamos, a partir desta histórica edição do "NÃO", dizer "NÃO" à nefasta MORAL HANS.