EDITORIAL
 

Entre as muitas mensagens pessoais que eu recebi logo após ter informado os amigos, conhecidos e contatos que o Não 53 estava no ar, uma me tocou particularmente. Era da Beta Timm, e acho que ela não se importa se eu publicar um trecho:

"Adorei receber um e-mail teu, (...) mesmo que tenha tido por mote uma palavra que há algumas décadas venho olhando com certo distanciamento - o 'não'. Coisa de hippie velha, que tropeçou no trotskismo na luta contra a ditadura mas não resistiu e acabou voltando à velha e boa idéia da paz e do amor. Achei interessante a revista de vocês. Podia ter um pouco mais de jornalismo e umas moças menos amargas, né? (...) Do fundo do coração te desejo muito 'sim' em 98."
 
Fiquei tão chateado que tive que voltar às origens, repensar como é que isso tudo tinha acontecido, e terminei escrevendo pra ela um texto que bem pode ser usado como base pra este editorial. (Claro que ele vai começar por uma retrospectiva histórica, mas eu juro que é a última que eu faço neste século.) Pois era mais ou menos assim.

Também me considero um hippie velho e - pior! - tardio. Em compensação, nunca fui trotskista: na época do movimento estudantil, eu me dizia anarco-trotskista, mas era só pra irritar os anarquistas e os trotskistas ao mesmo tempo.

O Não original foi uma experiência muito interessante e enriquecedora pra mim e, acho, pra todo mundo envolvido nele, entre 1975 e 1983. Na verdade, no começo o nome era outro, ou eram outros: quando eu editava se chamava IMPRESSÃO, quando o Heron Heinz editava era EX-CALADO, quando o Ricardo Cordeiro editava era BAGAÇO. A função do editor era apenas juntar as colaborações dos outros (escritas a mão, em páginas de caderno), grampear e fazer circular de mão em mão.

Aí o público interessado cresceu, o que fez surgirem mais "redatores", alguns começaram a escrever a máquina e em folhas tamanho ofício, e mais gente se candidatou a "editar". Então a gente precisava de um outro nome. Em dezembro de 77, quando estávamos preparando o número 27 do EX-CALADO, eu perguntei pro Alvaro Magalhães qual seria o novo nome do jornal e ele, que não queria voltar àquele assunto, respondeu: NÃO! E ficou.

Na época, eu tinha 20 anos, e era uma violência comigo mesmo chamar uma coisa que eu fizesse de NÃO. Num dos números seguintes, escrevi uma matéria só de citações contrárias ao título. Lembro de algumas:

"Yes is the answer" (John Lennon, Mind games)
"E eu digo sim, e eu digo não ao não" (Caetano, É Proibido proibir).
"A Palavra certa é sim." (Walter Franco, Revolver)

Mas, no final, eu colocava o título de uma música do Chico Buarque, do Calabar: "Vence na vida quem diz sim". Quer dizer, tinha uma dialética interessante. Tudo o que eu não queria na época era "vencer na vida". Pelo menos eu achava isso.

Camus, em sua releitura de Nietzsche (O HOMEM REVOLTADO), propõe ir "além do niilismo", o que, reduzido a uma fórmula de manual de auto-ajuda, seria "primeiro dizer NÃO para depois poder dizer SIM". Claro que eu não conhecia esse texto, e mesmo que conhecesse ele provavelmente não se encaixaria no meu raciocínio da época: não tinha essa coisa de etapas, com 20 anos era "tudo ao mesmo tempo agora". No número 28 escrevi um MANIFESTO NÃO (uma página em branco) e no 29 um MANIFESTO SIM, em que a única coisa compreensível era o subtítulo: "que também pode ser o manifesto também não". O Jorge colocou na Internet (seção "não era assim") a capa do número 42, um grande NÃO formado de SIMs, como o LUXO/LIXO do Augusto de Campos (ou era do Haroldo?).

E os trocadilhos e jogos de palavras que se podiam fazer com esse título? No próprio número 27 já tinha: "Seja você também um niilista: não leia, não divulgue, não assine e não colabore com o Não - um novo marco na história da imprensa (ou será que não?)" Mas é claro que os jogos de palavras nos interessavam mesmo era por suas possibilidades de inversão de significados. A partir daí, eu passei a adotar um cacoete de texto que na época me pareceu extremamente radical: sempre que eu afirmava alguma coisa, colocava um ponto e depois acrescentava: "Ou não".

Acima de tudo, NÃO tem uma outra vantagem sobre a maioria dos outros nomes que se poderiam usar para um jornal na Internet: ele tem til. Acho essencial para a cultura brasileira hoje brigar pela acentuação em português o tempo todo. Não é purismo: é direito à diversidade - o que já foi descoberto em outros países há muito tempo. Tem um sítio sobre cultura hispânica que se chama eñe. Nós aqui, como bons jecas-tatus pré-macunaímicos, ficamos clicando, deletando, assessando, (argh) atachando e (aaaarghhhh!!!!) daunloudando.

Tem uma velha história gaúcha que se passa numa das nossas muitas guerras de fronteiras, sei lá qual. Num determinado momento, os castelhanos (uruguaios? argentinos? paraguaios?) entraram no Rio Grande disfarçados como peões locais. Mas havia uma maneira infalível de desmascará-los: cada índio suspeito que passava era obrigado a dizer a palavra "PÃOZINHO". Quem dissesse "PAUCINIO" era sumariamente degolado. O til, tanto quanto o quero-quero, é um histórico defensor das nossas fronteiras.

Essa história era pra constar no editorial do primeiro Não internético, como incitação jornalística e histórica de defesa cultural. Pra completar a trocadilhagem, era pra começar assim: "Meu tio sempre me contava..." Mas o Jorge, provavelmente com razão, terminou optando pela análise de conjuntura.

Enfim, tudo isso é pra dizer que eu concordo plenamente com a Beta: podia e devia ter muito mais jornalismo, podia e devia ter moças mais alegres. Mas as coisas nunca são bem como a gente planeja. Aliás, eu fiquei extremamente deprimido quando li o Não 53 na Internet. Mas esses dias o Alvaro me falou que só eu poderia imaginar (e eu imaginei) que seria o mesmo Não de outras encarnações. De qualquer maneira, agora é tarde: espero que vocês, pelo menos, se divirtam.

Giba Assis Brasil
abril de 1998