Juízo

(argumento para curta-metragem)

 

por Jorge Furtado

 

 

Porto Alegre, sexta-feira, 16 de fevereiro de 1999. Temperatura: 37 graus. A cidade está vazia. Todos estão na praia, de férias. Todos? Não.

No escritório de contabilidade "J. Silveira e Irmãos", no bairro da Azenha, o escriturário Beto Figueirinha, 28 anos, solteiro, branco e suado, olha o relógio e lê um livro de bolso, "Os sequestrados de Altona", de Jean Paul Sartre. Ele tirou férias em janeiro e parece ser a única pessoa na cidade. A única? Não.

Na mesma sala, Janice Machado, 32 anos, casada, branca e feia, também confere livros e faz contas. Beto termina suas contas, olha no relógio e fecha o livro. Ele está de partida para Tramandaí, de ônibus, e tem pouco tempo para chegar na rodoviária. Está arrumando suas coisas quando Janice o chama. Pede que Beto lhe ajude em alguns cálculos. Ela é nova no serviço e não sabe a diferença entre fatura e nota fiscal. Beto diz que está atrasado, que vai perder o ônibus. Janice faz uma cara triste. Ao ver a cara triste de Janice, Beto senta para ajudá-la.

Beto chega atrasado na rodoviária, que está superlotada. Vê seu ônibus deixando o box 25. Corre para alcançá-lo, atravessando a pista. É atropelado e morre. Morre? Morre.

Céu.

Beto é recebido no céu por um anjo. O anjo tem uma planilha na mão e fones de ouvido, aqueles com um microfone, usado em estúdios de tv. O anjo se apresenta, confere a planilha e diz que ele vai representar a raça humana no juízo final. Beto não entende nada.

O anjo explica que ele já morreu há milhões de anos e que agora ele foi escolhido, por sorteio, para representar a raça humana no julgamento final, na presença de Deus e do público. Deus não faz qualquer distinção entre o seres que criou: amebas, árvores, baratas e seres humanos, todos têm a mesma importância. Como Deus não pode julgar individualmente todos os seres, escolhe, aleatoriamente, um representante de cada espécie. Beto foi escolhido para representar a raça humana.

Ele fica apavorado, não concorda, não se sente preparado para tão vasta tarefa. O anjo não quer nem saber. Diz que já está na hora e introduz Beto no cenário do "Juízo Final". Parece um programa de auditório, com uma cadeira destinada ao réu e outra a Deus. Atrás da cadeira de Beto, dois placares eletrônicos, um azul, com nuvens, representando o céu, e outro vermelho, com fogo, representando o inferno. No centro, ao fundo, um telão. O cenário se completa com um logotipo luminoso ("Juízo Final") e um grande relógio.

No auditório, anjos, diabos e a torcida da raça humana. São homens e mulheres de várias épocas: vikings, papas, mulheres das cavernas, árabes, chineses, astronautas.

Deus é anunciado e surge, sem dizer uma palavra. O apresentador do programa e advogado de acusação é o Anjo Gabriel, com espada de fogo e tudo. Gabriel explica as regras do jogo: ele vai lembrar todas as coisas ruins que a raça humana fez e Deus estabelecerá pontos para cada uma delas. Beto deve lembrar as coisas boas. Se, no final, o escore das coisas boas for maior, a raça humana vai para o céu. Se o escore maior for o das coisas ruins, a raça humana vai para o inferno.

Beto protesta, diz que ele não pode ser o responsável pelos atos de toda a espécie. O Anjo começa a falar e a pontuação do inferno vai crescendo (Hiroshima, todas as guerras, a economia de mercado, as propagandas de cigarro, o ciúme, a inveja). Tudo que o anjo fala aparece no telão sobre o palco. Beto protesta e começa a falar das coisa boas (o amor, a Nona Sinfonia, Picasso). Alguns pontos positivos surgem no placar. A torcida vibra. ("Raça Humana! Raça Humana!").

O Anjo contra-ataca. (massacres, traição, injustiça, a telesena e o papatudo, livros de auto-ajuda). A torcida "assopra", e os pontos de Beto vão subindo (Thomas Mann, os trigais, a Capela Sistina). Beto vai pegando o jeito do jogo e sua pontuação começa a subir, mas a de Gabriel ainda é muito maior.

(passagem de tempo)

Beto e o Anjo estão exaustos. A torcida está paralisada. A pontuação, quase empatada, com ligeira vantagem para o inferno. Beto começa a se repetir. O Anjo também não tem mais o que dizer de ruim sobre a raça humana.

Beto percebe que ainda tem, no bolso o livro de Sartre que estava lendo no dia em que morreu. Tira o livro do bolso e procura um trecho. Acha e lê, em voz alta.

"Séculos que virão, eis pois o meu século. Solitário e disforme, o réu. Eu responderei por ele. Vós que desconheceis as nossas dores, como podeis compreender o poder atroz de nossos amores mortais? Crianças lindas que saís de nós, nossas dores vos terão feito!"

Esta fala vale a Beto 200 pontos e a pontuação do céu passa a do inferno. Beto e a torcida comemoram. Beto se empolga e cita o autor: Jean-Paul Sartre. Gabriel grita: um ateu! Beto perde 4 pontos.

O jogo está empatado: 1.654.893 pontos para o céu e 1.654.893 para o inferno. O relógio anuncia que falta um minuto para o fim do julgamento. Deus informa que em caso de empate a raça humana vai esperar um milhão de anos no purgatório até ser novamente julgada. Beto pede a ajuda da platéia. Ninguém lembra mais nada de bom sobre a raça humana. Beto tenta alguns chutes, mas a produção informa que ele está se repetindo. Faltam 15 segundos.

Beto lembra da ajuda que deu a Janice, no dia de sua morte. Conta a história, que aparece no telão. Deus pensa um pouco e considera que aquele ato vale 1 ponto. Soa o gongo. A raça humana está no céu. A torcida invade o palco, cantando: "Olê, olá, a raça humana tá botando pra quebrar!" Carregam Beto nos ombros. "Arcanjo! Arcanjo! Arcanjo e Querubim! /Arruma outro anjo que este já chegou ao fim!" Caem balões. O Anjo Gabriel anuncia, para a próxima semana, o julgamento das amebas. Créditos finais, enquanto a torcida canta: "Um, dois, três / quatro, cinco, mil / queremos que as amebas vão pra puta-que-o-pariu!".