Comecei a escrever este roteiro há uns cinco anos. Chamava-se "Depois da peste" e pretendia ser uma história intimista de um adolescente que se transforma em adulto (as primeiras mulheres, os primeiros empregos, as primeiras decepções com as mulheres e os empregos). Parei na página quatorze, sem a menor idéia de como seguir adiante. O texto ficou arquivado num disquete com a etiqueta "Roteiros incompletos", que levei para as férias em janeiro deste ano (férias são um bom momento para revisar a vida e textos incompletos). Acabei escrevendo um final, mexi um pouco na estrutura e troquei o título. Como nunca mais vou fazer curta-metragem, resolvi botar no "Não". E lanço aqui a campanha "Não bote no lixo, bote no Não", destinada a resgatar todas aquelas tentativas de dizer alguma coisa sobre o mundo que o mundo, infelizmente, dedidiu ignorar para sempre.

 
 
MINHA VIDA ATÉ AQUI (MELHORES MOMENTOS)
 
Roteiro de Carlos Gerbase

 

CENA 1 - Ônibus, int, dia

O HERÓI está dentro de um ônibus em movimento, com o estojo de couro do seu baixo no colo. Ele lê um livro. Atrás dele, um casal se beija apaixonadamente.

HERÓI (OFF) - Naquele tempo, eu estava lendo um livro chamado "Homem total e parapsicologia", de Albino Aresi, um frei capuchinho que tinha fundado uma associação para estudar a alma humana. A primeira frase, lembro até hoje, era a seguinte: "Este livro foi feito para dar ao leitor o máximo de segurança e de verdades filosóficas, ou as mais prováveis". Eu achava fantástico que alguém estivesse me oferecendo verdades filosóficas absolutas, ou pelo menos as mais prováveis. Era um livro muito instrutivo, e eu tinha certeza que, se conseguisse ler até o fim, a minha vida tomaria um rumo completamente diferente.
 

CENA 2 - Créditos iniciais

Cartões pretos, letras brancas. Um baixo começa uma melodia bem simples.

 

CENA 3 - Estúdio de ensaios, int, dia

O herói toca o seu baixo, continuando a melodia que começou nos créditos iniciais. A porta abre e entra ESQUILO, o baterista, segurando um copo de cerveja e o estojo dos pratos. Ele senta na bateria, abre o estojo, pega uma baqueta, procura mais alguma coisa e não acha.

ESQUILO - Tu tem uma baqueta pra me emprestar?

HERÓI (parando de tocar) - Não.

ESQUILO - Porra, eu sabia que não devia ter dado a baqueta no final do show. E a guria era feia, acredita? Eu dei uma baqueta pra uma guria feia e agora tô empenhado e não posso ensaiar.

HERÓI - Às vezes têm umas baquetas velhas perdidas aí pelos cantos.

ESQUILO (começando a procurar atrás das caixas de som) - Às vezes as feias são mais fáceis de comer. Mas aquela nem isso.

A porta abre outra vez e entra ALTAMIRANDO, o guitarrista, com o estojo da guitarra em punho. Vai logo perguntando:
ALTAMIRANDO - Vocês têm uma palheta pra me emprestar?

HERÓI - Não.

ESQUILO - Claro que não, o babaca. Vai dizer que tá sem palheta?

ALTAMIRANDO - Tô. Eu dei pra uma guria no final do show.

ESQUILO - Uma guria feia, com cara de cavalo?

ALTAMIRANDO - Não. Ela é linda. Parece a Kim Basinger, só que é morena.

ESQUILO (irônico) - Depois de quantas cervejas tu achou ela parecida com a Kim Basinger?

A porta abre e surge uma menina linda, KIM, parecida com a Kim Basinger, só que morena.
KIM (para Altamirando) - Telefone pra ti, amor.
Altamirando sorri.
ALTAMIRANDO - Essa é a Kim.
Eles saem do estúdio, deixando o herói e Esquilo atônitos.
ESQUILO - Eu vou matar esse cara, com palheta ou sem palheta.

HERÓI - Sabe, eu li uma vez que as mulheres bonitas são muito mais fáceis que as feias.

ESQUILO - Por quê?

HERÓI - Todo mundo dá em cima delas, o tempo todo, e aí as defesas vão caindo. Elas acabam topando por cansaço. As feias não. Como ninguém avança, a resistência é muito forte.

ESQUILO (achando uma baqueta quebrada num canto) - Essa é a teoria mais imbecil que já vi na vida.

HERÓI - Talvez não seja uma verdade absoluta, mas é uma probabilidade. Se der certo uma vez, já tem o seu valor.

Altamirando volta para o estúdio, abraçado em Kim.
ALTAMIRANDO - O Marlon não vem. Tá muito mal. Não consegue nem sair da cama.

ESQUILO (furioso)- Cara, eu peguei dois ônibus lotados, me fudi pra conseguir uma baqueta, deixei minha namorada me esperando, e agora esse imbecil diz que não vem? Porra, pra mim chega, esse merda não sabe cantar, nem sabe beber. Não entendo porque a gente não troca de vocalista.

ALTAMIRANDO - Ele pagou todos os nossos ensaios desse mês e te comprou quatro pares de baquetas.

ESQUILO (se preparando pra sair) - Grande merda.

HERÓI - Ele limpou a tua barra aquela vez que tu vomitou no colo do brigadiano.

ESQUILO (saindo) - Grande merda. Eu tô falando de música, de arte, e não dessas merdas aí.

HERÓI - A gente podia aproveitar e fazer uma música. Antes de vocês chegarem eu tava tirando uma melodia legal.

ESQUILO - Não dá. Não tem mais clima. Tchau. (E bate a porta, atrás de si.)

ALTAMIRANDO (também saindo) - Eu vou aproveitar pra fazer um lance pra minha mãe. Por quê tu não grava e leva pra mim hoje de noite? Aí eu crio em cima. Falou? Até mais. (E sai, carregando Kim com ele.)

O herói empunha o baixo e recomeça a tocar a mesma melodia.
HERÓI - Nessa época, a vida era suficientemente simples para ser encarada como um ensaio. É claro que eu invejava o dinheiro de Marlon e as namoradas de Altamirando, mas nem uma coisa nem outra pareciam valer tanto assim. Eu estava procurando um professor de baixo, para aprimorar a minha técnica. Antes eu já tinha feito um semestre de japonês e um curso intensivo de redação comercial. Agora queria persistir no baixo. O livro dizia que todo homem inconstante e volúvel - que muda sempre de idéias, empregos, amizades - é imaturo. Eu estava cansado de ser imaturo. Queria me especializar em algo, ser bom naquilo e alcançar a maturidade. Ou pelo menos chegar perto.
 

CENA 4 - Apartamento de Rildo, int, dia

O herói e RILDO, o professor de baixo, estão na sala, cada um com o seu instrumento. Uma pequena bateria eletrônica também está ligada ao amplificador.

RILDO - Atenção. Um, dois, três.
E aciona a bateria. O herói toca, acompanhando o ritmo, mas logo surje GRAZIELA, esposa de Rildo, vindo da cozinha, com uma criança pequena no colo.
GRAZIELA (azeda, mas educada) - Tá muito alto, vai acordar a criança.
Rildo desliga a bateria e o herói pára de tocar.
RILDO (um pouco ríspido) - Pelo amor de deus, Grazi, eu tô tentando dar aula.

GRAZIELA (agora evidentemente disposta a brigar) - E eu tô tentando cozinhar com uma criança no colo.

RILDO - Bota ela na cama.

GRAZIELA - Ela sempre acorda quando eu boto ela na cama.

RILDO - Então deixa ela acordada.

GRAZIELA - Eu tô cansada de fazer tudo nessa casa, enquanto tu fica aí tocando e se divertindo.

RILDO - Eu tô dando aula.

GRAZIELA - Por quê tu não cria vergonha na cara e arranja um emprego decente? Sabe quanto nós estamos devendo pro pai?

RILDO - TU tá devendo. TU! Eu não queria um box novo no banheiro, (apontando pra cima) nem esse lustre horrível, nem a forração do quarto.

GRAZIELA (saindo, possessa, rumo à cozinha) - Mas tu quer esse almoço, não quer?

RILDO (para o herói) - Desculpa, ela tá nervosa. Mas eu resolvo logo isso, e gente continua a aula.

Graziela volta da cozinha com uma panela na mão e, enquanto fala, pega os bifes com um garfo e atira em Rildo.
GRAZIELA - Toma teus bifes, professor.
O herói rapidamente guarda o baixo no estojo, vai para a porta e dá um tchau para Rildo, que continua se esquivando. Rildo acena de volta e leva um bife na cara. O herói sai para o corredor do edifício. Os gritos da briga, agora misturados com o choro da criança, ainda podem ser ouvidos.
HERÓI (OFF) - Rildo era o melhor baixista da cidade, o número um.
 

CENA 5 - Sala da casa do herói quando criança, int, dia

SEU MENEZES, pai do herói, está sentado numa poltrona, fumando um cigarro enquanto conta a féria do dia. Vai separando o dinheiro, que tira de uma carteira de couro, e formando pequenos montinhos, que envolve com atilhos de borracha. Num banquinho, acompanhando tudo com atenção, o nosso herói, com uns dez anos.

HERÓI (OFF) - Assim como o meu pai, que era considerado o melhor fotógrafo da cidade. Ele tinha um estúdio na Oswaldo Aranha e era especialista em fotos familiares, festas, essas coisas. Quando chegava em casa e começava a tirar o dinheiro da carteira, eu achava que nós éramos muito ricos.
O Seu Menezes pára de contar, olha para o filho e discursa, num tom meio formal, como se não estivesse falando com uma criança:
SEU MENEZES - Filho, pode ter certeza de uma coisa: não existe nada mais importante que o trabalho. O trabalho não traz só dinheiro, traz dignidade, traz satisfação, traz paz. Se me tirarem o trabalho, me tiram a vida. Estuda, meu filho, que um dia também terás uma profissão e poderás afirmar, como eu: sou um homem de bem, honesto, e sustento a minha família com a força do meu trabalho.
 

CENA 6 - Quarto da casa do herói quando criança, int, dia

DONA VANDA, mãe do herói, está ajudando-o a fazer o tema de OSPB. O caderno do herói estampa, bem grandes, as palavras FAMÍLIA, SOCIEDADE E PAÍS, seguidas de espaços em branco para serem preenchidos. Dona Vanda faz tricô enquanto observa o filho escrever.

HERÓI (OFF) - Minha mãe era dona-de-casa, nunca tinha aprendido uma profissão, mas também era honesta e trabalhadora.
Dona Vanda pára de tricotar, acaricia o cabelo do herói, sorri e diz:
DONA VANDA - É melhor não colocar no teu caderno o que eu acho que seja uma família. O que diz no teu livro?

HERÓI - Que é a "célula-mater" da sociedade.

DONA VANDA - Então escreve isso.

HERÓI (enquanto escreve) - Mas isso eu não sei o que é.

DONA VANDA - Não faz mal. Depois a professora explica. E tem certas coisas que é melhor aprender na prática.

 

CENA 7 - Sala do apartamento do herói, int, dia

O herói vê "Aqui Agora" na televisão. O volume está alto, mas mesmo assim podem ser ouvidos os sons de uma trepada que vem do quarto ao lado.

HERÓI (OFF) - Ainda não aprendi. Divido um apartamento de um quarto com Franco, centro-avante reserva do Grêmio, que é um cara super legal, mas estamos muito longe de formar uma família. Na verdade, a gente se fala muito pouco, porque ele usa o apartamento basicamente para transar. Às vezes traz um zagueiro reserva, amigo dele, e eu tenho sair da sala e ir para a cozinha. Com eles estão na reserva, não têm medo de perder energia para os jogos.
FRANCO, abraçado em DERLI, sai do quarto, de cuecas e chuteiras. Despedem-se com um beijo. A garota sorri rapidamente para o herói e sai. Franco fecha a porta e respira fundo.
FRANCO - Me fez botar chuteiras! Pelo amor de deus... tem gosto pra tudo.

HERÓI - Como é o nome dela?

FRANCO - Derli.

HERÓI - Como?

FRANCO - Derli. Nome esquisito, né?

HERÓI - É o nome do fazendeiro que matou Chico Mendes.

FRANCO (pensativo) - Bem que eu achava que era nome de homem. Mas essa aí é bem mulher, garanto.

HERÓI - Deu pra ver.

FRANCO - Chico Mendes... Chico Mendes... Esse cara não jogava no Palmeiras?

 

CENA 8 - Sala do apartamento do herói (há dois anos atrás), int, dia

GRAÇA, ex-namorada do herói, está estudando na mesa da sala. À sua frente, uma edição de bolso da "Poética", de Aristóteles. O herói lê um gibi do Batman, recostado num sofá. A decoração é bem diferente da vista na cena 7.

GRAÇA - Sabe qual é o nosso problema? Falta de catarse.

HERÓI - Catarse?

GRAÇA - A gente não briga, não joga os pratos um no outro, não bota pra fora o que está dentro.

HERÓI - Catarse é isso? Pancadaria?

GRAÇA - Não. É uma válvula de escape pra todas as frustrações que a gente acumula. A catarse é uma coisa fundamental para a vida em comunidade. É a ritualização da violência. É a arte cumprindo seu verdadeiro papel social.

HERÓI - Tudo bem. Se tu quiser brigar, eu também brigo.

GRAÇA (desmotivada) - Deixa pra lá. Não tem catarse suficientemente violenta pra resolver o nosso caso.

Graça volta a estudar. O herói volta ao Batman. Quando vemos Graça outra vez, ela está vestida como uma grega do século IV A.C., com uma toga branca e um coque no cabelo. O herói, por sua vez, passa a envergar o uniforme de Batman.
HERÓI (OFF) - Dois dias depois, ela pegou todos os livros e foi embora. Tínhamos alugado o apartamento juntos há menos de seis meses. Achávamos que tudo ia dar certo, porque combinávamos no fundamental. Eu ainda achava isso quando ela foi embora. Depois descobri que, durante todo o tempo, ela estava transando com o professor de Literatura Dramática.

 

CENA 9 - Estúdio do Seu Menezes, int, dia

Dona Vanda, muito arrumada, leva o herói ainda menino para visitar o estúdio do pai. Chegam à ante-sala do estúdio e a RECEPCIONISTA, evidentemente nervosa, sacode a cabeça, como se dissesse que o Seu Menezes não está. Só que, por trás dela, vêem-se claramente os relâmpagos dos flashes em funcionamento no estúdio. Dona Vanda, sempre levando o filho pela mãe, passa pela recepcionista, que ainda tenta impedi-la, e entra no estúdio. Pára, chocada demais para gritar. O Seu Menezes, de costas para ela, ajusta alguma coisa na câmara. Junto ao fundo infinito, onde geralmente posam respeitáveis famílias de classe-média, está uma ADOLESCENTE completamente nua, segurando uma maçã, oferecida num gesto lângüido para a objetiva.

HERÓI (OFF) - Pequenas tragédias como essa são comuns na minha vida. Das grandes, lembro só de uma. Minha mãe inventou de fazer uma visita de surpresa ao estúdio de meu pai. Se arrumou toda, me vestiu com a roupa de ir na missa, e lá fomos nós, de mãos dadas. Eu sempre ficava muito excitado quando ia ao estúdio, mesmo que fosse só para ver respeitáveis famílias de classe-média posando para a câmara de meu pai. Naquele dia, contudo, meu pai estava dando vazão ao seu até então desconhecido veio artístico.
Dona Vanda está aos prantos. Seu Menezes fala sem parar ao lado dela. A adolescente se veste ao fundo. O herói tenta prestar atenção ao que o pai está dizendo, mas não desgruda os olhos da adolescente.
HERÓI (OFF) - Minha mãe não aceitou muito bem as explicações de meu pai. E eu era muito pequeno para entender direito o que ele falava. Provavelmente ele disse que precisava de uma válvula de escape para a frustração de fotografar a vida inteira, dia após dia, famílias de classe-média. Talvez tenha até falado em catarse, na função social da arte, mas minha mãe continuava não aceitando. Depois daquele episódio, minha mãe e meu pai nunca mais foram os mesmos. Nem eu. De repente, percebi que nem todas as meninas eram chatas e desinteressantes.
 

CENA 10 - Apartamento do herói, int, dia

O herói assiste ao Jornal Nacional. No meio do noticiário de economia, Franco sai do quarto, abotoando a calça.

FRANCO - Escuta, eu e a Derli vamos sair pra jantar. A Heloísa também vai. Tu não quer ir junto?

HERÓI - Não, obrigado.

FRANCO - É que o Bruno deu o fora nela ontem, e ela tá super deprimida. Dá uma força, vai.

HERÓI - Eu tenho que acordar cedo amanhã. E nem conheço essa Heloísa.

Derli vem para a sala e abraça Franco.
FRANCO - Eu pago a conta. Recebi os bichos atrasados.

DERLI - Eu tô preocupada com a Heloísa. Ela tava se apaixonando por aquele monstro.

FRANCO - Só hoje. Vai ser legal.

HERÓI - Tudo bem. Mas eu tenho que dormir cedo. Eu vou jantar com vocês e depois volto direto pra casa.

FRANCO - Combinado.

DERLI (falando bem alto, em direção à porta do quarto) - Ele topou!

HERÓI (muito surpreendido) - A Heloísa está aqui?

HELOÍSA aparece, vindo do quarto, tentando sorrir, mas na verdade está deprimida.
HELOÍSA - Ôi. Não se preocupem comigo. Eu tô bem melhor.

DERLI - E vai ficar melhor ainda depois do jantar. Vamos?

 

CENA 11 - Restaurante, int, noite

O herói, Franco, Derli e Heloísa estão jantando. Heloísa está nitidamente interessada no herói, que tenta fazer de conta que não é com ele.

HERÓI (OFF) - A primeira coisa que ela disse, durante o jantar, era que não tinha gostado muito de participar da transa de Franco e Derli, que tinha se sentido meio deslocada.
Heloísa bebe e fala.
HELOÍSA - Suruba, tudo bem. Mas assim, sei lá, parece que vocês estavam me fazendo um favor, só porque o Bruno arranjou aquela perua. E eu poderia ficar uma noite sem transar... Eu sou forte. Mas, enfim, aconteceu... Sabe, no fundo acho que eu sou conservadora.
Todos riem bastante na mesa. Heloísa, já bastante bêbada, passa a mão na perna no herói, que disfarça, mas gosta. Ele também está bêbado.

 

CENA 12 - Danceteria, int, noite

A música está naquele volume que impede qualquer diálogo. Derli e Franco beijam-se na mesa. Heloísa literalmente arrasta o herói para a pista de dança. Fica sacudindo-se na frente dele, que mal consegue mexer os pés. O herói protesta, diz que não quer dançar, mas Heloísa não pode ouvi-lo.

HERÓI (OFF) - Foi uma longa noite. Eu lembrava que teria que acordar às seis no dia seguinte, mas ao mesmo tempo gostava de ver uma garota bonita sacudindo-se na minha frente. Obviamente nós iríamos transar em seguida, o que para mim era um acontecimento. Desde a briga com a Graça, minha vida sexual era tão excitante quanto a Hora do Brasil.
 

CENA 13 - Apartamento do herói, int, noite

Os quatro entram juntos, meio trôpegos. Franco e Derli logo desaparecem, rumo ao quarto. O herói e Heloísa sentam-se no sofá da sala. O herói olha para Heloísa, que olha para o herói. Do quarto, começam a chegar os primeiros ruídos da transa de Franco e Derli. O herói, ajudado pelo álcool, toma coragem e vai beijar Heloísa. Ela parece estar a fim, mas, no último momento, afasta-se.

HELOÍSA (decidida) - Não. Dessa vez eu vou começar direito.

HERÓI (tonto) - Começar o quê?

HELOÍSA (entusiasmada) - Eu sinto que nós podemos evoluir juntos.

HERÓI - Evoluir pra onde?

HELOÍSA (levantando-se) - Chega de agüentar a tirania do organismo. Nós vamos entrar num círculo superior.

HERÓI - Que círculo?

HELOÍSA (saindo) - Hoje não dá. Estamos intoxicados pelo álcool. Amanhã, às seis da tarde, começamos.

O herói está pasmo. E bêbado. Olha para a porta por onde Heloísa saiu e tenta raciocinar. Franco, só de cuecas, entra na sala e procura alguma coisa em baixo das almofadas.
FRANCO - Tu viu minhas chuteiras?

 

CENA 14 - Apartamento do herói, int, dia

O herói está dormindo no sofá da sala. Pela janela, entram os primeiros raios de sol. Toca o despertador. O herói acorda e desliga o despertador. Está com sono e dor-de-cabeça. Entra no quarto e abre o roupeiro. Franco e Derli dormem, nus. Ele está de chuteiras. O herói pega suas roupas e vai para o banheiro. Escova os dentes de olhos fechados. Pega uma maleta da câmara VHS, um tripé e sai de casa. Caminha até uma parada de ônibus. Encosta-se num poste e fecha os olhos. Um ônibus chega na parada. Ele abre os olhos e entra.

HERÓI (OFF) - Trabalhar como autônomo tem vantagens e desvantagens. É bom porque não se tem patrão. É ruim porque não se pode ligar para o patrão e inventar qualquer coisa. Naquele dia, eu pensei seriamente em ligar para o Silva e dizer que estava mal, que não tinha condições de fazer o serviço. Mas não queria perder um bom cliente, que pagava em dia e praticamente sustentava o meu aluguel.

 

CENA 15 - Casa de Caroline, int, dia

O herói toca a campainha, na frente da porta de uma casa de classe-média, e volta a fechar os olhos. Demoram para abrir. Está quase dormindo em pé. A porta abre e surge CAROLINE, de camisola. O herói não percebe que ela chegou e continua de olhos fechados. Caroline olha para ele, desconfiada. Depois percebe o tripé e a maleta da câmara e sorri.

HERÓI (OFF) - E assim, levado pelo meu exacerbado senso do dever e lutando bravamente contra a ressaca, naquela manhã, mais exatamente às seis e trinta e cinco, conheci Caroline. Eu estava com tanto sono que não percebi o quanto ela era maravilhosa.

CAROLINE - Bom dia.

HERÓI (abrindo os olhos, assustado) - Bom dia. Desculpe. Eu trabalho com o Silva. Vou fazer a cobertura dos preparativos do casamento. É a senhora que vai casar?

CAROLINE (sorrindo) - Eu? Não. É a minha irmã Berenice. Entra.

HERÓI (entrando na casa) - Com licença.

CAROLINE - E olha, não me chama de senhora, tá? Eu tenho dezessete anos.

HERÓI - Desculpe.

CAROLINE (indicando uma cadeira) - Senta aqui. Eu vou chamar a mãe.

O herói senta e observa o interior da casa. Logo depois chega a MÃE DA NOIVA, de robe. Cumprimenta o herói. O PAI DO NOIVA aparece bocejando, de mau-humor. Caroline acompanha o papo. O herói explica o que vai fazer. A mãe da noiva conduz o herói até a porta do quarto da noiva. Ela entra. O herói volta a fechar os olhos. Depois a mãe abre a porta e convida o herói a entrar. O herói abre o tripé, coloca a câmara no lugar, enquadra e pede para a mãe abrir a janela. O sol entra, iluminando o quarto. Caroline acompanha tudo, encostada na porta. A noiva, BERENICE, acorda, olha para a câmara e sorri.
HERÓI (OFF) - O Silva tinha inventado um novo tipo de video de casamento, que ele chamava de "Cobertura total". Por um adicional bastante considerável nos custos, o dia dos noivos era gravado desde o momento em que acordavam até o final da festa. O Silva sempre pegava o noivo, que acorda muito mais tarde. Eu ficava com a noiva, normalmente cheia de compromissos desde as primeiras horas da manhã. O Silva depois editava todo o material, antes das imagens da cerimônia do casamento. A "Cobertura total" fazia sucesso principalmente com os pais dos noivos, que assim preservavam as últimas imagens dos filhos antes da dolorosa separação.

 

CENA 16 - Salão de festas, int, noite

O NOIVO e a noiva, completamente bêbados, sentam no fundo do salão. O herói aponta a câmara para eles. Uma CONVIDADA cochicha alguma coisa no ouvido de Berenice e depois tira um dos sapatos da noiva. As duas saem, rindo.

HERÓI (OFF) - Era um trabalho duro, que só terminava quando os noivos saíam do salão de festas.
O noivo olha para o herói. Ele fala enrolando a língua.
NOIVO - Escuta aqui.

HERÓI - Sim, senhor.

NOIVO - Eu tenho uma proposta pra deixar esse vídeo mais interessante.

HERÓI - Sim, senhor.

NOIVO - Você vai gravar a gente... no hotel. Entendeu?

HERÓI - Não, senhor.

NOIVO - Não me chama de senhor. Eu tenho vinte anos.

HERÓI - Tudo bem.

NOIVO - Chega aqui.

O herói se aproxima.
NOIVO - Vocês gravaram tudo, menos o essencial. Já falei com a Berenice. Ela está completamente bêbada. Topou na hora.

HERÓI (devagar) - O senhor quer que eu grave...

NOIVO - O grande momento. A Berenice é virgem. Você acredita? É o fim do século, a mulherada se liberou há milênios, e a minha noiva é virgem. Completamente virgem. Você vai gravar, vai registrar tudo. E eu, Napoleão Rosa dos Santos, vou entrar para a história!

HERÓI - Mas essa gravação não está incluída no pacote. Eu tenho que falar com o Silva.

NOIVO - Que Silva porra nenhuma! Olha, a Berenice tá trazendo o sapato. O que tiver lá dentro,é teu.

Berenice chega, com o sapato na mão, mais bêbada do que antes. O noivo tira o sapato dela e entrega para o herói, que começa a contar. O herói fica surpreso.
HERÓI (OFF) - Tinha um monte de dinheiro lá dentro. Acho que ela calçava trinta e nove ou quarenta.
 

CENA 17 - Quarto de hotel, int, noite

O herói, atrás do tripé da câmara, grava alguma coisa que não vemos. De vez em quando, tira o olho de visor e mexe nos paus-de-luz.

HERÓI (OFF) - Foi uma experiência estranha. O mais difícil era acertar a luz, porque eles se mexiam muito. Mas até que eu gostei. Aquilo era mais interessante que o despertar da noiva.

 

CENA 18 - Cela de delegacia, int, dia

O herói está sentado numa cela, com um olho roxo.

HERÓI (OFF) - Infelizmente, o pai da noiva ficou sabendo e não gostou. Tiraram todo o meu dinheiro, quebraram minha câmara e me deram umas porradas. O delegado disse que eu tinha sorte, podia ter acabado no presídio.
O noivo, de ressaca, também preso, aproxima-se do herói.
NOIVO - Você guardou a fita?

HERÓI - O pai da sua esposa botou fogo nela.

NOIVO - Que pena... Puxa, desculpe pela roubada.

HERÓI - Tudo bem. Acontece.

O noivo dá uns tapinhas nas costas do herói e se afasta. O herói fica olhando para o infinito.
HERÓI (OFF) - Eu tinha chegado no fundo do poço. A vida parecia ser uma coisa terrível. Mas o delegado era gente fina e perguntou se eu precisava de alguma coisa de casa. Só lembrei de um livro, que talvez me ajudasse a passar o tempo.
Uma mão alcança um livro para o herói.
HERÓI (OFF) - Fiquei preso por quatro dias e consegui terminar o "Homem total e parapsicologia" (o herói sorri). Animado pelo livro, decidi encerrar aquela fase da minha vida, dedicada à procura de máxima segurança e verdades filosóficas absolutas, passando para um novo período existencial, de exploração das inúmeras probabilidades à minha frente. Isso foi muito bom para mim.
 

CENA 19 - Estúdio, int, dia

O casal do ônibus se beija apaixonadamente. Aparentemente, estão nus. A câmara recua e mostra o herói, que olha a cena com ar profissional.

HERÓI (OFF) - Abri meu próprio negócio e fui crescendo aos poucos. Não foi fácil, mas minha experiência em vídeos de casamento revelou-se fundamental. Comecei com produções de orçamento muito baixo, como "Três virgens e uma cenoura". Hoje posso gastar mais, como nesta história chamada "Orgasmos psicotrópicos da oitava efervescência". Adotei um pseudônimo, o que todos fazem nesse ramo, mas não esqueci nenhum dos meus velhos conhecidos.

HERÓI - Corta!

 

CENA 20 - Bar, int, noite

Esquilo, o baterista, Altamirando, o guitarrista e Rildo, o professor de baixo, fazem um show num barzinho ultra-underground.

HERÓI (OFF) - Rildo, meu professor de baixo juntou-se com Esquilo e Altamirando, formando a banda de punk-progressivo "Mendigos Ultra-tech". O nome foi idéia minha. Eu sempre vou nos shows. Um dia eles vão fazer muito sucesso.
Graziela, esposa de Rildo, e Kim, a namorada maravilhosa de Altamirando, beijam-se apaixonadamente no fundo do bar.
HERÓI - Graziela, a esposa de Rildo, quando soube da banda, disse que pediria o divórcio, mas então conheceu Kim, a namorada de Altamirando. As duas apaixonaram-se e são inseparáveis.

 

CENA 21 - Cemitério, ext, noite

Dona Vanda coloca flores num túmulo.

HERÓI (OFF) - Meu pai morreu. Minha mãe às vezes visita o túmulo, mas desconfio que ela nunca superou o trauma daquele dia no estúdio.

DONA VANDA (depois de olhar para os lados, na direção do túmulo) - Filho-da-puta!

 

CENA 22 - Estúdio/cama, int, dia

Franco transa com Derli e Graça. Os três calçam chuteiras.

HERÓI (OFF) - Franco cansou de ser reserva e abandonou o futebol. Ele estava mal, mas então eu o convidei para trabalhar comigo. Ele relutou um pouco, mas acabou trazendo sua namorada Derli e minha quase namorada Heloísa. Foi ótimo. Esta é uma cena de "O tesão das zagueiras taradas na hora do pênalti", o primeiro grande sucesso da minha produtora. Vendi doze mil cópias só no Japão.

 

CENA 23 - Sala de aula, int, dia

Graça dá aula. Escreve "catarse" no quadro-negro.

HERÓI (OFF) - Graça, minha ex-namorada estudante de letras, hoje é professora numa universidade pública. Coitada. Talvez ofereça pra ela um emprego de roteirista.
 

CENA 24 - Sala, int, dia

Mesa grande. Almoço de domingo. Berenice, Napoleão, os pais de Berenice, o herói e Caroline, todos comendo felizes.

HERÓI (OFF) - Berenice e Napoleão moram com os pais dela. Napoleão é comprador de sapatos num grande magazine. Berenice não faz porra nenhuma. Eu casei com Caroline, a filha mais moça. No começo, os meus sogros não aprovaram minha profissão, mas depois Caroline contou pra eles o saldo da minha conta bancária. Graças ao sucesso de "Adolescentes de chuteiras de travas altas" eu tinha ganho meu primeiro milhão de dólares. Hoje sou um cara feliz. Não posso dizer que esteja realizado, mas acredito que a vida seja boa, contanto que não se fique atrás de verdades filosóficas absolutas. Eu e Caroline estamos pensando em ter um filho, quem sabe até um casal. Falei com meu sogro em criar um novo departamento na produtora, para fazer filmes sérios, mas ele me desaconselhou. Disse que não se mexe em time que está ganhando. Pensando bem, ele tem toda razão.
 

CENA 25 - Créditos finais