SINAIS DE VIDA INTELIGENTE
NO PLANETA ROCK
 
por Rodrigo Guri
 
Quem pensa que no mundo do rock'n'roll não há mais espaço para contestação está precisando de uma boa reciclagem. A velha fórmula das bandas alternativas que se tornam pop ao assinarem contrato com uma grande gravadora e das bandas pop que viram alternativas quando brigam com seus managers talvez seja apenas mais uma regra com exceções.

os mais do que alternativos

No final do ano passado, o editor-assistente da Rolling Stone Jerry Fincher teria encomendado a dois repórteres uma matéria especial sobre as XX-altern, nome como estão sendo conhecidas algumas bandas que, quase sem querer, fogem a boa parte das normas do mundo rocker. O resultado: dois repórteres a menos no jurássico órgão oficial de todas as tribos. Embora a revista não assuma a história como verdadeira, o fato é que Dave Osgood e Bob Polchewski não mais assinam matérias na Stone. Dave, que ficou conhecido por ter revelado o câncer de Iggy Pop em 1995, é o novo segundo baixista de uma das mais antigas XX-altern, como se verá a seguir. E Polchewski literalmente sumiu do mapa - o que não impede que volte a aparecer em alguns meses, fazendo parte de alguma fita demo de origem, como sempre, desconhecida.

uma história nebulosa

Porque, se há alguma coisa comum a essas bandas tão diferentes entre si (em janeiro o crítico inglês Jeremy Fosse cunhou a expressão "Down and Out Movement", outra tentativa de enquadramento igualmente fadada ao fracasso), é a forma como aparecem e desaparecem de cena: uma fita demo com três ou quatro músicas, inegavelmente rock apesar das formações instrumentais originais, com letras sempre agressivas e irônicas, aparece na caixa postal de alguma rádio não diretamente ligada a qualquer uma das grandes gravadoras - mas sem endereço ou telefone para contato, e com pouquíssimas informações sobre autores, músicos, influências, etc.

Há muito tempo que os empresários do rock aprenderam a lidar com as bandas de garagem. Mas mesmo estas tinham uma característica que facilitava o contato: elas QUERIAM ser descobertas pelas gravadoras. Ou então, fenômeno mais recente, dispunham-se a criar seus próprios selos. Nem um nem outro parece ser o caso das XX-altern, que, por absoluta falta de presença no cenário mundial, terminaram se tornando um fenômeno interno, intrigante, mas até hoje comentado quase que exclusivamente por DJs e executivos. É assim que, da noite pro dia, em conversas de final de tarde ou em animados chats internéticos, surgem lendas como as dos reggaemen filipinos "Oxelotls", ou do grupo de blues argentino "The Big Green Terrible Rock-eating Subterranean Monster" ou da recentíssima banda techno-feminista de Chicago "Clinton's Trainees".

onde tudo começou

Mas não há dúvida de que o maior fenômeno do XX-altern vem, como sempre, da Comunidade Britânica, específica e provavelmente de Dublin. Foi lá que, por volta de 20 anos atrás, deixou seu primeiro rastro visível aquele que viria a ser o inspirador-mor do "movimento", se é que se pode falar assim: um sardento gordinho (ou gordão, segundo descrições mais maliciosas) que teria hoje entre 38 e 56 anos de idade chamado James Wilbour, ou Jim Wabley, ou ainda Jimmy Wave. O certo é que um pouco antes, ou um pouco depois de Sid Vicious e Johnny Rotten encontrarem Malcolm MacLaren e detonarem o movimento punk, Jim e seus capangas (de nomes ainda mais obscuros que ele próprio) criaram a mítica e quase secreta "Gutterloids".

Quem ouviu a primeira demo dos Gutterloids (e foram poucos) jura que sua formação incluía guitarra, três baixos, harmônica e trombone de vara, além de quatro vozes femininas que não faziam exatamente "backing vocals", mas algo do gênero. Aliás, teria sido uma dessas moças que, involuntariamente, acabou provocando o completo desaparecimento do único disco lançado pela banda: "The Swindle of the swindle", uma óbvia referência aos Sex Pistols e seus outros companheiros de viagem naquele final de década, e que certamente seria delicioso conferir hoje.

Seria. Porque toda a tiragem do vinil, mais as matrizes e mesmo as instalações do pequeno estúdio dublinense desapareceram como num passe de mágica, segundo consta comprados pelo pai da tal moça, um dos poucos nobres britânicos que, àquela altura, ainda teria dinheiro, influência e disposição para uma operação desse tipo.

o que sabemos de verdade

De qualquer maneira os Gutterloids voltariam a se manifestar, ainda que mantendo sua absurda originalidade. Em 1984 a rádio alternativa KSTU, de Londres, recebeu uma fita contendo três músicas de uma banda que se identificava como "Gutter Lords", e na qual os especialistas identificaram o punch musical e o sarcasmo das letras de James Wilbour. Três dias e muitas execuções depois, o estúdio da rádio sofreu um atentado a bomba, até hoje não esclarecido. Porém, em 1987, uma fita encontrada num stand da feira de Osaka mostraria o próprio Jim cantando "I did it", sua única gravação incontestável até hoje. Embora ainda hoje se discuta (veja em http://www.w3.org/pub/~bizarrerock/gutterloids.html) se "I did it" significa que Jim assumia a fita anterior, o atentado ou ambos.

Nos anos 90, o mistério Wilbour/Wabley/Wave, longe de dissipar-se, só fez aumentar, a cada nova demo surgida sabe-se lá de onde, a cada nova formação experimentada por ele e/ou por seus seguidores, a cada nova informação (sempre desmentida) sobre seu paradeiro ou sobre a possível existência de algum exemplar de "The Swindle of the swindle" mantido por algum colecionador maluco. Os Gutter Lords, com ou sem Jimmy, têm mais de 20 gravações conhecidas, a última delas com Dave Osgood como segundo baixo e - segundo a lenda - com a participação especial e não creditada de Eric Clapton em "Time upside down".

um letrista demolidor

Em sua maioria, as composições atribuídas a Wabley são rocks de alta voltagem melódica, com instrumentações de peso e letras quilométricas, quase recitadas e muitas vezes pouco inteligíveis, retratando temas políticos e comportamentais ou auto-reflexões sobre o mundo rock. "Rolling to nowhere", por exemplo, é uma sátira à megaturnê dos Stones pela América Latina em 1995. "I'm the target" (1991) é um pesadelo de George Bush, que acorda no meio do bombardeio de Bagdá. "Dave and the Pup" (1989) é o hilário relato de um encontro amoroso, em alguns momentos bastante explícito, entre dois velhotes na torre superior da Basílica de São Pedro. Só nas últimas estrofes é que se percebe que os personagens são o antediluviano roqueiro David Gilmour e o não menos conhecido Karol Wojtyla ("the Pup", para os íntimos, o que era o caso).

eles existem!

Pra quem, durante tanto tempo, agiu como se dissesse "esqueçam que a gente existe", os XX-altern até que estão aparecendo bastante ultimamente. Em novembro do ano passado a KTMU, maior rádio rockeira da costa leste americana, dedicou uma semana de programação a eles. Em fevereiro deste ano uma home-page pessoal (http://www.geocities.com/CollegePark/4049) publicou uma foto que seria de Wabley, em sua fase Jimmy Wave - não contestada, mas que foi retirada do ar duas semanas depois. Finalmente, em março, ao anunciar a primeira lista de possíveis bandas européias que pintariam no Brasil na temporada de 1998, um conhecido empresário carioca incluiu (certamente como piada) o nome da Gutterloids. Nenhum dos jornalistas presentes tinha ouvido falar. Também pudera. O contrário seria esperar demais da inteligência do Planeta Rock.

Rodrigo Guri
abril de 1998