"Pec pec pec pec."
Tem ambição de cruzar a rua.
A moça atravessa em sua direção. Ao ver o cego naquela ânsia, resolve ajudar.
Ela também é deficiente visual. Tem quatro graus de miopia. Realmente, não chega a ser cega. Vai ajudar, então. Não que creia que Deus esteja a olhar para sua linda ação. Tampouco para fazer bonito para o povo. Não, nem pensa em se candidatar a alguma coisa na área política. É uma garota de poucas ambições, talvez até menores que as do cego.
Pega o braço direito do homem.
"O senhor quer atravessar a rua?", interroga, sabendo que a pergunta é óbvia. Quer é avisar que pode auxiliá-lo na travessia.
"É...! É, sim, quero...hãm...a senhora pode me ajudar?"
Outra pergunta que responde a si mesma. Coisa de cego. Afinal, as palavras não são as coisas, como já garantia Foucault.
"Vem", chama a moça, quase a puxar a criatura à mercê. Ele lhe oferece o braço vacilante.
Dois ônibus passam, assustando o homem da bengala branca, que desvia o corpo, num gesto instintivo.
"Eu fico aqui", esclarece ele, sorrindo, à moça. "Vou pegar o ônibus.
Muito obrigado. Tudo de bom!". E o velho vai-se, brandindo a bengalhinha na frente de si.
"Pec pec pec pec."
Depois de largar o braço do cego, com ar de serviço cumprido, a moça retoma seu caminho. Põe o pé na faixa de segurança. Sua ambição é vencer o espaço até a calçada do outro corredor e ganhar o lado oposto da rua.
Mas não previa - ou não viu - o ônibus.
Foi colhida em cheio.
Morreu na hora.