Gato xadrez
por Dante Sasso
 
 
Era uma vez um gato xadrez. Quer que eu te conte outra vez? Pois bem. Pra começar: era sim um gato xadrez. E não me surpreendi, pois embora improvável, sempre imaginei que um gato xadrez pudesse vir a existir. Laura ria, mas eu não me importava. Estava sentado na praça ao lado do Colégio Rosário, na borda de mármore do chafariz. Eu, não o gato. O gato atravessou a Avenida Independência (sinal vermelho) com um ar de quem nem imagina o que é um automóvel. E cruzou por mim sorrindo. Como o gato da história de Alice, Cheshire Cat. Só que aquele é amarelo com listras pretas. Este era um gato xadrez. E por xadrez entenda-se não aqueles extravagantes padrões dos clãs escoceses. Era um xadrez no sentido exato da palavra: como um tabuleiro de jogo de xadrez. Um gato com quadradinhos brancos e quadradinhos pretos. Sorrindo.

Ah, queria só ver a cara da Laura. Não. Não queria ver Laura. Eu tinha acordado de mau humor após mais uma noite de amor e ódio com ela. E saí de manhã bem cedo só com uma camiseta de mangas compridas e brancas. Calor, arregaçava as mangas. Frio, cobria os braços. Passei um dia inteiro de agosto na praça pensando em tudo-menos-Laura. E estava com os braços cobertos quando ele passou. O gato xadrez. E naquela monotonia de dia inteiro sem fazer nada, esperando o sol morrer lá atrás da Santa Casa, quando ele já não esquenta mais, resolvi seguir o gato. Difícil. Ele não olhou uma vez sequer para trás, mas sabia que era seguido. E a dificuldade em segui-lo não estava em alguma tentativa de fugir, mas na tranqüilidade que demonstrava. Cruzava todos os sinais vermelhos. Um pulinho, asfalto, outro pulinho. Eu atrás. Eu e uma centena de olhos - que maluco seguiria pelas ruas um gato? - um gato xadrez?

Foi indo devagar, andar-de-gato, pisando firme na frieza cinza da calçada. Eu já estava cansado, mas aquela perseguição esquentava meu corpo enquanto driblávamos as movimentadas ruas do Centro. Salgado Filho, Doutor Flores, Andradas. Andradas! O gato xadrez dirigia-se à Usina, onde eu havia marcado um encontro com Laura, e onde eu já desistira de ir para segui-lo. Se fosse algum tempo antes de Laura me encher com suas dúvidas, eu tomaria aquele gato e o chamaria de Lauro, talvez (na verdade eu gostava dela). Mas um nome é um acontecimento, já dizia Huckel. E fiquei observando o gato com a idéia fixa de escolher um nome. Scott. Poe. Dante. Byron. Goethe, vem cá, bichano. Laura. Encostada na parede da Usina, em frente à chaminé. Aproximei-me, acompanhando o gato xadrez com os olhos, mas ele já sumia em direção à margem do Guaíba.

- Tu não me amas.

Ouvi aquilo todo o caminho de volta. Nem pensei em contá-la que enfim eu vira um gato xadrez. Por onde andaria? Talvez esgueirando-se nas sombras da lua já alta, fugindo de mendigos esfomeados. Deixei Laura na porta de casa, na rua Barros Cassal e, sem dizer adeus, ela repetiu seu texto:

- Tu não me amas.

- É verdade. Eu não te amo. (Que homem amaria uma mulher que não acredita em um gato xadrez?)

No caminho para casa avistei novamente o gato atravessando a Avenida Independência (sinal vermelho), desta vez no sentido inverso. Peguei-o e trouxe-o para casa. Aliás, naquela noite eu peguei um gato e um resfriado. Bem, na verdade, no dia seguinte pela manhã, em outro gélido dia de agosto, me fugiu apenas o gato xadrez. Atchim! Quer que eu te conte outra vez?