Pink
 
por Alex Sernambi (desenho) e Carlos Gerbase (texto)
 
 
Acordo. Minha cabeça dói demais, minhas bolas também. Acho que me excedi no sexo. Tudo porque quis provar para Pink que eu também era capaz de proporcionar-lhe uma noite inesquecível. Tão boa ou melhor que a noite que passara com meu amigo Farias.

Todos conhecem a fama de Farias. Há uma lenda: algumas de suas ex-amantes, hoje casadas ou com novos namorados, costumam reunir-se secretamente para rememorar juntas os momentos históricos que tiveram com Farias. E avaliam sua técnica insuperável, seu tremendo apetite, sua criatividade, sua capacidade de levá-las ao êxtase com inusitadas seqüências de gestos magistralmente executados.

Enfim, Pink, como tantas outras, costumava dizer que a sua noite inesquecível acontecera nos braços de Farias. E eu, apaixonado por Pink, e sentindo que ela também sentia alguma coisa por mim, morria de medo de ser comparado com o sensacional Farias em nossa primeira trepada. Ela não teria que falar nada. Apenas uma sombra em seu olhar, logo depois do sexo, seria suficiente para revelar o veredicto: foi bom, mas não foi inesquecível, como foi com Farias.

Eu sofria muito, antecipadamente. A situação chegou ao cúmulo na semana passada: na tranqüilidade do meu apartamento, eu e Pink nos beijávamos, nos acariciávamos, estávamos prontos para tirar a roupa e finalmente concretizar nosso mútuo desejo, quando o fantasma de Farias apareceu e acabou com tudo. Pink, é claro, não sabia o que me fez ir ao banheiro e ficar lá mais de quinze minutos, suando frio, morrendo de medo da comparação com o gênio do sexo. Quando voltei, Pink disse que entendia e foi embora, certamente achando que eu era maluco.

Então decidi telefonar para meu amigo Farias e pedir ajuda. Disse que tinha uma garrafa de Jack Daniel's novinha esperando por ele. Em vinte minutos ele estava lá. Fui direto ao ponto: como transformar minha primeira noite com Pink numa noite tão inesquecível quanto a que ele, Farias, lhe proporcionara? Farias riu e disse que era difícil lembrar dos detalhes, que fazia muito tempo, que Pink estava exagerando, etc. Mas seu orgulho era evidente. Farias usava a fama espalhada pelas ex-amantes para conquistar novas amantes. Farias era infernal.

Depois da quarta dose, Farias se soltou. Disse que cada mulher é um universo, que cada uma tem regiões erógenas localizadas em pontos diferentes, às vezes muito bem escondidas, que é preciso muita sensibilidade. Mas então sorriu e disse que Pink era muito fácil de satisfazer. Tive vontade de dar-lhe um soco na cara, mas me contive e perguntei: "O que devo fazer com Pink?" E ele contou tudo:

"A Pink é do tipo falsa-romântica, bastante comum. Quer dizer, antes de ir pra cama, parece cheia de recatos e ai-ai-ais. Depois que tira a roupa, quer tudo".

"Tudo?", perguntei, espantado.

"Tudo. Têm mulheres que são assim: querem ser beijadas de todas as maneiras, querem ser acariciadas em todas as superfícies, querem ser penetradas em todos os orifícios. Querem tudo. Elas dão bastante trabalho, mas apenas trabalho braçal (se bem que não é só com os braços que se faz, claro). Mas não é preciso pensar muito. É fácil. Eu acho muito mais difícil contentar mulher fresca, que não gosta de certo detalhe. Por exemplo: a Quita sente cócegas no..."

"Pára", gritei, interrompendo Farias. "Não me interessa onde a Quita sente cócegas. Eu quero saber o que fazer com Pink."

"Eu já disse: tudo."

Eu peguei papel e lápis, olhei com toda a seriedade para Farias, disse que a expressão "tudo" era muito imprecisa e pedi ao Farias: "Vamos fazer uma lista".

E veio a lista, enorme, cheia de surpresas, acompanhada por comentários desconcertantes de Farias, como "depois, repete de joelhos". Quarenta e dois passos, um depois do outro, às vezes um em cima do outro, uma loucura, só o Farias pra esbanjar tanto conhecimento e tanta criatividade. Anotei tudo. Quando Farias terminou, enfiei a garrafa de Jack Daniel's em baixo do seu braço e expulsei-o da minha casa. Gentilmente, é claro. Bastante bêbado, e já com a porta do elevador fechando-se, Farias virou-se e conclui: "Mas não esquece do toque pessoal. Toda mulher gosta de um toque pessoal". A porta fechou, Farias desapareceu. E eu pensei: pro inferno o toque pessoal! Passei o resto da madrugada decorando cuidadosamente a lista de Farias.

Na noite seguinte, fui ao apartamento de Pink. Em pouco tempo estávamos outra vez nos arretando apaixonadamente. Eu estava tranqüilo: agora saberia o que fazer. Quarenta e dois passos para tornar aquela noite inesquecível. Foi então que vi a foto. Sobre uma mesinha cor-de-rosa, envolta numa moldura amarela, uma foto do meu amigo Farias, de óculos escuros, parecia zombar de mim. Parecia dizer: "Você não é capaz de lembrar dos meus quarenta e dois passos". Nesse instante, esqueci absolutamente toda a lista de Farias. Provavelmente esqueci até como se beija. Seria com a boca?

Pink tentou me acalmar. Deitou-se no chão, nua, com suas pantufas amarelas, e colocou um disco. Essa imagem nunca vou esquecer. A mulher que eu adorava, ali, à minha disposição, e a foto de Farias, o infernal Farias, zombando de mim.

Poderia ter sido meu fim. Poderia, mas não foi. Pink notou que eu olhava para a foto, pareceu lembrar-se de algo e disse: "Você sabia que o Farias foi viajar?"

"Não", respondi.

"Ele passou aqui hoje no fim da tarde, todo apressado. Disse que estava indo pra São Paulo e tinha que deixar uma coisa pra você". Pink pegou um envelope numa gaveta e estendeu-o para mim. "Acho que é um bilhete".

Abri o envelope, que estava muito bem colado. Desdobrei o papel. Em letras de forma, maiúsculas e retilíneas, ali estavam, descritos resumidamente, os quarenta e dois passos que Farias me ensinara na noite anterior. A última linha dizia: "Eu estava muito bêbado. Fiquei com medo de ter trocado a ordem. Esta é a certa. Não esquece o toque pessoal. Boa sorte. Farias."

Sorrindo, dobrei o papel, coloquei-o outra vez no envelope e guardei no bolso da calça. Pink perguntou o que era.

Contando o toque pessoal, foram quarenta e três respostas.

Agora minha cabeça dói. Minhas bolas também. Mas nunca esquecerei minha primeira noite com Pink. E, tenho certeza, ela também não. Que Deus abençoe o infernal Farias.