VIVA LIESSA MORTA
por Dante Sasso
- O senhor sabe. Se o senhor não fosse
um homem inteligente, não saberia do que estou falando, nem estaria
conversando com um desconhecido. Todo homem é uma ilha. Nossos problemas
só têm uma solução certa, que é sentar-se
num bar e beber, e abordar as pessoas, ouvi-las, incomodá-las, fustigá-las,
pessoas que nunca vimos e que nunca mais veremos, agindo como um estrangeiro
ansioso por tornar seu novo país em um lugar conhecido e familiar.
Eu me perdi, encontrei a pessoa que merecia ter, merecia mas não
podia. E concentrei todos os meus esforços para buscá-la
e entendê-la. Só que ela parecia não existir, um ser
mitológico, com uma lenda própria, uma existência difusa.
Parecia-se muito com aquele sujeito, o senhor sabe, a lenda do homem que
nunca morre, que foi enviado à Terra para perambular entre solos
e gerações e testemunhar a triste condição
humana. Chama-se Gilgamesh, o senhor lembra? Mas a mulher que conheci não
só testemunhava minha triste condição, também
compreendia, enchia minha finitude, e parecia ter a única missão
de mostrar a alguém que é indispensável sonhar. E
ela cumpria essa missão muito bem, em minha cabeça ela parecia
mesmo querer construir essa verdade com visões poéticas e
eternas, e acho que foi por isso que procurou tanto por alguma coisa que
a tornasse infinita, imortal. Ou talvez o tenha feito inconscientemente,
achou o quadro em algum mercado vagabundo de Viena e acreditou que aquilo
produzia a semelhança que descobri mais tarde. Muito tarde. Eu nunca
viria a saber. Tinha um cabelo negro, púrpuro negro. Os olhos eram
pontos escuros, profundos. Encarar seu olhar era como deparar-se com um
abismo. A imagem na entrada do salão era perturbadora, me hipnotizava,
aguçava meus sentidos. Lembro até mesmo da música,
uma música ritmada e pura. O senhor gosta de música? Eu adoro
a música, ela também a adorava. O marco da porta - moldura
- carregava uma pintura alvíssima, esplêndida. Liessa parecia
mesmo ter saído de um quadro. Se o senhor tivesse visto essa imagem
ao menos uma vez, saberia do que estou falando. E esta garrafa - vinho
Maltese, não é? Bom vinho - não está me fazendo
exagerar. Caminhava de encontro a mim. Na testa, começando na fonte
direita, rente à raiz dos cabelos, uma tatuagem, um ramo de flores
rosa-azuladas que acabava na fonte esquerda. Passos tranqüilos, elegantes.
Passei apenas uma noite com ela para descobrir que a precisava para continuar
vivendo. Liessa substituía todos os meus vícios. Ao menos
por algum tempo, ela me salvou. É desagradável explicar,
o senhor não precisa tentar entender. Eu tinha problemas, o álcool
me conduzia e me consumia, as noites solitárias eram preenchidas
com garrafas de vinho, entre uma partida e outra de snooker, no Monastier,
um grande salão de jogos. Isso antes de conhecê-la. O senhor
disse que é escritor, não é? O senhor então
concorda que em histórias cruéis e intensas como essa sempre
há um elemento intrigante, uma brincadeira do destino, não?
Na literatura em geral, e também na realidade - a vida imita a arte?
- os fatos sempre se unem em um ponto trágico e imperceptível.
O dono do Monastier era também o dono de Liessa. E fazia tempo,
tenho certeza, fazia tempo que ele sabia sobre nós dois. Seu olhar
era gelado, e pode parecer mórbido, mas é a única
coisa que relembro em seu rosto. Um homem forte, da minha altura, com cabelos
compridos e loiros. Estava velho, e talvez seus gestos e feições
demonstrassem que estava mais interessado em dinheiro do que em mulheres,
ou na própria mulher. Ela era muito mais jovem, e dizia nunca ter
jurado amor a ninguém. Eu acreditava. Casara por dinheiro, deixara
sua cidade em busca dos conhecimentos e segredos que só as janelas
e paredes de uma metrópole como esta escondem. Gostava de usar roupas
caras, sujas e velhas, mas caras. O companheiro, nas poucas vezes em que
mencionou seu nome, era arrogante e prepotente. Atirava dinheiro em sua
cara, chamava-a de puta, não por minha causa, não, isso acontecia
mesmo antes de me conhecer. Ela suportava, não fosse a proteção
dele estaria mesmo na rua. Talvez como uma puta. Tarde da noite, Liessa
me arrastava do salão e guiava seu Plymouth até um lugar
sossegado. Bebíamos vinho conversando e escutando blues. Claro,
fazíamos amor; mas em algumas vezes nem nos tocávamos. Depois
do que aconteceu, várias noites sonhei com seu rosto, mas havia
então uma bruma que não me dava certeza se ela estava mesmo
presente; com as mãos molhadas, eu agarrava e borrava aquele retrato,
e as tintas desciam pelo ralo, uma pasta cor-de-vinho que ficava em minha
mente por dias, até eu conseguir dormir de novo. Eu gostava, e precisava,
muito mais dela do que ela de mim. O senhor me desculpe a intimidade, falar
sobre estes assuntos, mas nunca falei a ninguém, falo agora, me
sinto melhor. Tudo isto pra mim é como uma confissão. Foi
numa noite de chuva, após várias garrafas de vinho, que Liessa
foi embora. Estava linda, mais branca do que nunca, mas com um jeito assustado,
e novo, e diferente. Deixou-me uma carta, mas esperei demais para abri-la.
Gostava de contemplá-la indo embora, as pernas e os quadris movendo-se
entre as mesas, cisne e vitórias-régias. Naquela noite, Liessa
parecia-se demais com a obra-prima de um pintor desconhecido, mas não
menos habilidoso. O senhor sabe por que eu não abri a carta naquela
hora? Hein? Se eu tivesse aberto o maldito envelope naquele momento poderia
alcançá-la antes que fosse. Às vezes penso que ela
sabia o que aconteceria, e que esperava que eu a salvasse. Quando se despediu
- nunca se despedia, nunca dizia adeus - seus olhos estavam úmidos
e muito mais escuros. Dentro do envelope, a cópia do quadro. "Viva
Liessa Morta", de Goeschi. Era irreal demais, irretocável. O quadro
parecia um retrato, mostrava uma figura feminina perfeita, cabelos e olhos
negros. O fundo era cor-de-vinho, mas a direção e a disposição
dos traços e riscos assemelhavam-se a grandes bolhas de sangue que
estouravam e molhavam os seios da moça, delicadamente nua. Foi ali,
naquele momento, enquanto me deliciava com tal semelhança - a arte
imita a vida? -, que perdi Liessa. Corri até o Monastier e as portas
estavam fechadas. Arrebentei-as com socos e chutes, e então o mundo
inteiro desabou com as portas de ferro. Deitado na primeira mesa, um corpo
lívido, coberto de sangue. Um sangue quente, espesso. Cor-de-vinho.
Ao seu lado, um velho de cabelos compridos e um rosto coberto de sombras.
Apontou-me a arma, mas minha loucura era muito mais pesada e metálica
que o chumbo dele. E mais amarga. O estilete cortou o ar com um silvo que
só eu ouvi. Risquei seu corpo dezenas de vezes. Pouco para quem
havia acabado com uma obra-prima. Escrevi em suas costas, em letras garrafais:
VIVA LIESSA MORTA. Não senti ódio. Era algo muito mais primário.
Talvez fúria. Cobri Liessa com uma cortina que rasguei das janelas,
e então minha mente gravou a imagem que me persegue até hoje,
a mancha de sangue cor-de-vinho sobre o feltro verde da mesa de snooker.
Fugi. Corri para muito longe, sempre correndo, não possuo nada em
lugar algum, meu caminho sempre foi assim, rápido e livre. Fugia
porém com uma dor aguda que atravessava meu peito e atingia minha
essência, e ainda atinge, e me deixa fraco, esmagado, destruído.
Liessa não existe mais, sua carne, seu corpo. Mas eu a vejo nas
tintas dos pintores, nos quadros, nos salões e mesas de snooker,
e nas garrafas de vinho, e principalmente nesta que estamos bebendo, pois
a verdade é que somos solitários, nossos desejos e medos
são só nossos. O senhor sabe. Todo homem é uma ilha.