Os personagens de "Atração vital" são, de certo modo, antípodas dos tipos presentes nas porno-chanchadas. Nestas, a regra era procurar o sexo oposto sofregamente, arriscando tudo por alguns momentos de descontração. Se havia uma família, esta era um obstáculo a ser superado. Se havia um casamento, este era sinônimo de prisão. Em "Atração vital", marido e mulher insistem em fazer, sob as bençãos da Igreja e da Sociedade, o que as figuras tão "imorais" das porno-chanchadas faziam escondidas.
Dando continuidade à exitosa série “NÃO jogue fora, jogue no NÃO”, por mim iniciada com “Minha vida até aqui (melhores momentos)”, no NÃO 54, publico agora o roteiro de “Atração Vital”, inscrito no concurso Resgate do Cinema Brasileiro junto com o roteiro de “Deus Ex-machina”, que acabou virando filme, enquanto esta “Atração Vital” caía na vala funda, escura e mal-cheirosa dos projetos nunca realizados. Mas eis que chega o momento desta história ver a luz, nem que seja a de um pobre e solitário computador ligado na Internet. Devido à extensão do texto (24 páginas) sugiro que o roteiro seja salvo e depois impresso. Boa leitura.
CENA 1 - QUARTO DO CASAL/INTERIOR/NOITE
Ambiente de puro sexo. Implícito, é claro. Numa cama de casal, um homem e uma mulher estão entretidos com a mais antiga das diversões. Vemos primeiro seus rostos. A mulher geme bem alto, quase escandalosa. O homem é mais do tipo que sua e bufa. Vemos detalhes dos seus corpos: os pescoços, os tornozelos, os joelhos, as mãos, nada de indecências (ainda). A mulher, cada vez mais entusiasmada, grita e fala umas bobagens típicas desse momento de pouca auto-crítica. O homem, molhado de suor, continua a bufar. Vemos finalmente os dois corpos por inteiro. Descobrimos que a mulher ostenta uma avantajada barriga de gestante, tipo nove meses e estourando. Esse fato parece não atrapalhar a relação. A coisa se complica um pouco quando a mulher tenta se movimentar. Pede ajuda. O homem tenta puxá-la, mas não consegue. A mulher desiste e murmura algo que pode ser "Vamos assim mesmo", mas não dá pra escutar direito, por causa do barulho da cama rangendo. O homem vai pros finalmentes. A mulher grita cada vez mais alto. O homem, lavado de suor, faz aquela careta que beira o ridículo, os olhos fechados, os dentes trincados, etc. A mulher também encerra sua participação, com uma série final de gemidos. O homem está extenuado. A mulher está aparentemente satisfeita. O silêncio domina o ambiente. Então a mulher geme. O homem olha pra ela, surpreso. A mulher geme outra vez, desta vez bem mais alto. O homem confessa:
A mulher volta a gritar.
HOMEM (espantado)
Mas eu não tô fazendo nada.
MULHER (entre pequenos gemidos)
São contrações. Eu avisei que era perigoso...
(mais um gemido)
HOMEM
Contrações?
MULHER
É, lembra? Eu tô grávida.
HOMEM Mas era só na semana que vem!
A mulher respira fundo.
MULHER Acho que passou.
CENA 2 - QUARTO DO FILHO/INTERIOR/NOITE
Um menino de uns cinco anos, vestindo pijama, está na frente da TV, jogando "Street-fighter" no vídeo-game, com um fone de ouvidos. O som da cena é ponto-de-vista do menino, ou melhor, ponto-de-ouvido: rock violento em volume absurdamente alto. Na tela, pancadaria generalizada. O pai (o homem da cena anterior) abre a porta, no fundo do quarto, e fala alguma coisa. Vemos seus lábios se mexerem, mas é claro que não ouvimos nada. O pai, nervoso e apressado, grita. É inútil. Então o pai aproxima-se e tira um dos fones da cabeça do guri. O volume do rock diminui pela metade, mas agora também há o som do vídeo-game (muitos AARGHS e UURGHS). O pai, que se chama Gilberto, grita:
CAETANO
Não quero.
O pai desliga a TV e tira o CD.
GILBERTO (definitivo)
A tua mãe tá indo pro hospital, pra ganhar o nenê.
Tu não queria ir junto?
CAETANO
Posso levar o vídeo-game?
GILBERTO
Não!
CAETANO
Quase. (Ele abre uma gaveta e tira uma pequena câmara de video.
Liga a câmara. O botãozinho vermelho começa a piscar)
Agora tô.
Imagens da câmara de video (filmadas do monitor, e não transferidas decentemente). Bem amadoras: câmara na mão, problemas de foco, edição meio caótica. Os créditos iniciais aparecem superpostos a estas imagens, todas de curta duração (no máximo 3 segundos). Vemos o casal na porta do quarto do filho (final da cena anterior); saindo apressados da casa (o pai faz sinais de "vamos lá" para a câmara); no carro em movimento; entrando no hospital (portaria); e entrando no setor de partos. A imagem fica escura por instantes. Quando volta, aparece Caetano, meio emburrado, sentado num sofá. Uma mulher mais velha (sua avó) está a seu lado. A velha abana para a câmara. Depois já aparecem imagens da sala de parto. A criança nasce. Madalena sorri para a câmara. Mais uma vez a imagem fica escura por instantes. Quando retorna, estamos no quarto do hospital. Madalena segura o bebê no colo. Gilberto faz gracinhas idiotas para a criança. A vó fala sem parar, mas ninguém presta atenção. A seguir, o casal entrando no carro (a mãe no banco de trás). O casal abrindo a porta de casa. De repente, a imagem é substituída pelos chuviscos característicos de fita ainda não gravada.
Cena 4 - SALA DA CASA/INTERIOR/NOITE
A TV da sala exibe os chuviscos. Caetano desliga a câmara, que estava gerando as imagens. Entram imagens do Jornal Nacional. A família está toda na sala. Madalena dá de mamar ao bebê. Gilberto presta atenção no Jornal Nacional. Caetano abre um gibi de super-heróis e começa a ler, mas antes coloca fones de ouvido. que estão ligados num "walk-man". A avó fala sem parar, mas ninguém presta atenção. Sobre estas imagens, ouve-se, em primeiro plano, a voz de Gilberto (narração). À medida em que a narração fala das pessoas, ficam em segundo plano as seguintes trilhas: para Madalena - a canção de ninar que ela cantarola, totalmente desafinada, enquanto amamenta; para o bebê, a canção, só que cantada por uma voz celestial; para Caetano - um rock violento; para a avó - o som da prórpra voz, monótona e interminável; para Gilberto - o Cid Moreira lendo a última notícia do Jornal Nacional (se possível, alguma abóbora bem idiota).
GILBERTO (OFF) Esta é a minha família. Quer dizer, essa velha é a mãe da Madalena. Está só de visita. Antigamente morava conosco, mas acabou indo embora, porque se sentia muito sozinha. Essa é a minha mulher. Ela não é linda? Acabou de ter um filho e parece que ter saído de um Baile de Debutantes. Eu sou louco por ela. Tem um corpo espetacular, uma pele macia, pernas maravilhosas, seios.. Bom, só que atualmente apenas a Rita aproveita os seios. Ela vai ser linda como a mãe, tenho certeza. Tem treze dias de vida. Tenho medo do que vai acontecer quando tiver treze anos. Esse é o Caetano. Na escola, dizem que ele é precoce. Talvez pudesse ser um gênio infantil e ganhar muito dinheiro, mas prefere ser apenas uma criança idiota e feliz. E esse sou eu, tentando assistir o Jornal Nacional. Sou o chefe desta família, formada há mais de dez anos. Logo depois do casamento, eu e a Madalena planejamos tudo: alguns anos só para nós, e depois um filho. E o plano correu maravilhosamente bem... Até nove meses e treze dias atrás.
CENA 5 - QUARTO DO CASAL/INTERIOR/DIA
É um flash-back (nove meses e treze dias atrás). Gilberto e Madalena estão entretidos na mais antigas das diversões (eles gostam de antigüidades). O ambiente é de puro sexo, como sempre. Só que desta vez eles estão quase vestidos, aproveitando rapidamente o horário do almoço, e Madalena não tem barriga. Gilberto está sentado numa cadeira. Madalena está sentada em cima dele. Quando terminam, deitam na cama e ficam olhando para o teto. Conversam em voz baixa. A voz de Caetano vem de trás da porta fechada.
GILBERTO
Que a tua mãe vem jantar aqui?
MADALENE
Não. Que a minha menstruação tava atrasada.
GIBERTO
Lembro.
MADALENA
Pois é.
GILBERTO
Pois é o quê?
MADALENA
Na verdade, é mais do que isso.
GILBERTO
(pensa um pouco, depois fala sem convicção) Menoupausa?
Já?
MADALENA (sorrindo)
Não.
CAETANO (gritando, em OFF, atrás da porta)
Mãe, cadê a minha pistola laser?
MADALENA (gritando)
Acho que tá na pia da cozinha.
GILBERTO
Então...
MADALENA
Eu já tinha feito o exame.
GILERTO
Exame?
CAETANO (gritando, em OFF, atrás da porta)
Não tá lá. Aquilo é um fuzil semi-automático.
Acho que a pistola laser tá embaixo da cama de vocês.
GILBERTO (gritando)
Não enche, Caetano. A tua mãe tá descansando.
(Mais baixo, para Madalena:) Exame de quê?
MADALENA
Gravidez. Deu positivo.
CAETANO (outra vez em OFF)
Se vocês não abrirem a porta agora, eu derrubo ela com
a minha bazuca.
GILBERTO (bem pateta)
Positivo? Impossível. E o DIU?
MADALENA
Deve ter falhado. Acontece.
CAETANO
(agora ao vivo, com uma bazuca nos ombros. Ele olha pela mira e ameaça:)
Vocês tem cinco segundos. Cinco, quatro, três, dois, um...
CAETANO
(muito convincente) Não fui eu que derramei cola Tenaz no cabelo
da guria do trezentos e dois.
Continuação da cena 4. Só que agora quem fala é Madalena, ainda dando de mamar. Primeiro vemos o seu rosto, depois (ponto-de-vista dela) o rosto de Gilberto, de Caetano e do bebê.
MADALENA (OFF) Foi estranho quando eu disse pra ele que tava grávida de novo. Pensei que ia ficar brabo. Pensei que ele ia me culpar. Mas não. Ele simplesmente chamou o Caetano e disse que ele ia ter uma irmã. Estranho. Acertou até o sexo. A partir daí, é tudo flash-back, com imagens variadas do casal em diversos momentos de sua vida em comum (atenção para figurinos e cabelos!) que ilustrem a narração.
CENA 7 - SALA DE UMA CASA ONDE ACONTECE UMA FESTA/INTERIOR/NOITE
O clima, pra variar, deve ser de puro sexo. Estamos em uma festa da turma de Madalena, em 1982, embalada por algum rock da época. Madalena está sentada, conversando com alguém. Gilberto se aproxima e a convida pra dançar. Gilberto fala alguma coisa no ouvido de Madalena. Ela ri. Dançam até o final da festa.
Os dois dentro do carro, transando.
Os dois numa cama de motel, transando.
Os dois, dentro d'água, transando.
Uma barraca pequena, em terreno que mistura grama e areia. Madalena está deitada numa rede pendurada entre duas árvores, lendo, com a luz de um candeeiro a gás. Gilberto chega com duas casquinhas de chocolate e flocos. Entrega a casquinha de Madalena. Ela lambe. Ele senta ao lado dela, o que deixa a rede toda torta. Ela reclama. Ele a beija. Ela tenta resistir. Mas é inútil: logo estão transando. A porcaria é grande com os flocos e o chocolate.
Os dois no banheiro de uma casa onde está acontecendo uma festa, transando. Tem uma fila de gente querendo entrar no banheiro. Batem na porta, xingam, mas não adianta.
Primeira noite da lua-de-mel. Madalena está lindíssima, vestida de noiva (no começo, é claro). Ele também está vestido com a roupa do casamento. No final do texto, estão transando.
Os dois na cama do apartamento (o mesmo das outras cenas). Deitados na cama, um de cada lado, cada um lendo um livro, muito concentrados.
Ela tá fritando batatinha. Ele chega por trás e rapidamente ataca. Transam enquanto as batatinhas queimam.
Eles estão vendo TV na sala. Num bercinho, Caetano, com menos de um ano de idade, está quase dormindo. É uma cena de novela, com um beijo quente e apaixonado. Para Caetano, aquela seqüência monótona é definitiva: fecha os olhos e ressona.
MADALENA (OFF) Mas sobrava. Nada mudou. Pra dizer a verdade, parecia que a gente tinha voltado praqueles tempos de antes do casamento. E às vezes até era divertido.
CENA 17 - SALA DA CASA/QUARTO DAS CRIANÇAS/QUARTO DO CASAL/ INTERIOR/NOITE
Voltamos ao presente. Caetano, dormiu, mesmo com os seus fones de ouvido despejando centenas de decibéis por segundo. A velha também dormiu sentada, e ronca escandalosamente. O bebê dorme pacificamente no colo de Madalena. Enquanto ouvimos a narração de Gilberto, acontecem as seguintes ações: Gilberto acorda a velha, que, sempre falando sem parar, pega a bolsa, dá um tchauzinho e vai embora. Gilberto despluga o fone de ouvido de Caetano. Ele imediatamente acorda. Gilberto bota o plug de volta. Ele dorme de novo. Gilberto pega Caetano no colo e o leva pro quarto das crianças, ao mesmo tempo que Madalena também carrega o bebê até a cama. Lado a lado, ficam um tempo admirando o bebê dormir como um anjo. Depois começam a se beijar. Escapam para o quarto deles. Mais beijos, cada vez mais quentes. A coisa poderia evoluir, mas... ela está de quarentena. Cada um deita dum lado da cama. Abrem seus respectivos livros. Se olham de vez em quando. No final, vemos as capas dos livros: "O TAO DO AMOR E DO SEXO" e "SEXO TÂNTRICO PARA LEIGOS". Fade-out.
Fade-in. Últimos momentos de uma aula de literatura brasileira numa escola de II Grau. Gilberto está na frente do quadro-negro, onde rabisca alguma coisa sobre "Dom Casmurro" e Machado de Assis.
Final de expediente. Madalena em sua mesa, atendendo a um telefonema enquanto olha o relógio.
Gilberto continua sua aula.
CENA 21 - ESCRITÓRIO ONDE TRABALHA MADALENA/INTERIOR/DIA
Madalena olha o relógio de pulso, que é digital. Marca 17: 59. Passa pra 18:00. Imediatamente ela começa a recolher suas coisas e botar na bolsa. Em quinze segundos está de pé, caminhando para a porta. Os colegas de trabalho ficam espantados.
CENA 22 - ESTACIONAMENTO DA ESCOLA/EXTERIOR/DIA
Gilberto chega no estacionamento, sempre apressado. Abre a porta do seu carro, entra, liga o motor, acelera duas vezes e arranca. Duas alunas pedem carona, mas ele nem vê.
CENA 23 - PARADA DE ÔNIBUS/EXTERIOR/DIA
Madalena está numa parada de ônibus, impaciente. Espicha o olho, pra ver se o ônibus está vindo. Mas ele não vem. Caminha de um lado pro outro. E então faz sinal para um táxi. O táxi pára. Ela embarca.
CENA 24 - ESCOLA DE CAETANO/EXTERIOR/DIA
Gilberto estaciona na frente do colégio de Caetano. Caetano está sentado num murinho, conversando com uma menina. Gilberto faz sinal para o filho, mas ele não vem logo. Gilberto sai do carro, pega o filho pela mãe e praticamente o arrasta para o carro.
CENA 25 - SALA DA CASA/INTERIOR/DIA
Madalena entra em casa. A babá já está pronta pra sair. E sai. Madalena pega o bebê no colo e começa a dar de mamar.
CENA 26 - RUA ENGARRAFADA/EXTERIOR/DIA
O carro de Gilberto num engarrafamento. Pragueja. Bate na direção. Caetano atira nos carros vizinhos com uma metralhadora UZI de brinquedo.
CENA 27 - QUARTO DAS CRIANÇAS, BANHEIRO E SALA DA CASA/INTERIOR/ DIA
Madalena coloca a filha no berço. Ela está dormindo. Vai para o banheiro e começa a tomar banho.
Gilberto e Caetano chegam em casa.
MADALENA
(no box, tomando banho) Tô no banho. Já vou.
CAETANO
Pai, posso ir no apartamento do Quico?
GILBERTO
(enquanto olha o bebê dormindo) Claro.
CAETANO
(estranhando) Tem certeza? E o jantar?
GILBERTO
Depois tu janta.
CAETANO
(antes que o pai mude de idéia) Tchau! (E sai do apartamento)
GILBERTO
Saiu.
MADALENA
E a Lica?
GILBERTO
Dormindo.
GILBERTO
Eu? Não sei. (Hesita um pouco, depois continua) Não tá
precisando de ajuda?
MADALENA
Ajuda pra quê?
GILBERTO
Sei lá... (Cansa de disfarçar) Madalena, tu sabe que
dia é hoje?
MADALENA
(sorrindo, maliciosa) Sei. Sexta-feira.
GILBERTO
(avançando, libidinoso, para a esposa) Sexta-feira, treze de
março, dezoito horas e vinte e sete minutos. Há três
minutos atrás, nossa filha completou quarenta dias.
MADALENA
É mesmo? Sabe que eu não tinha reparado?
GILBERTO
É a Lica.
MADALENA
(tentando demonstrar bom-humor) Depois a gente continua.
GILBERTO
Claro.
Fade-in. Gilberto olha para a frente, ansioso.
GILBERTO
Tem certeza?
MADALENA
(sacudindo o berço) Tenho.
MADALENA
Deve ser o Caetano.
GILBERTO
Não. Ele sempre fica horas jogando vídeo-game com o Quico.
Deve ser bobagem.
MADALENA
(desvencilhando-se e indo para a porta) Então eu me livro rápido.
Gilberto está deitado, lendo. Madalena está sentada, terminando de amamentar a filha, que acaba dormindo. Madalena coloca o bebê num carrinho, perto da cama, e deita. Gilberto olha pra ela, que devolve o olhar com um sorriso. Gilberto coloca o livro no criado-mudo. Logo estão se abraçando, beijando e tirando a roupa um do outro. Madalena afasta Gilberto e pede:
MADALENA
(parando tudo) Que que é, filho?
CAETANO
Eu quero entrar.
GILBERTO
A tua mãe tá cansada, filho. Já é tarde.
Volta pro teu quarto e dorme.
CAETANO
Eu tenho medo de ficar sozinho.
GILBERTO
(tentando encerrar a discussão) Tu já é grande.
E menino grande não tem medo de ficar sozinho.
CAETANO
(começando a chorar) Eu não sou grande... (E abre o maior
berreiro)
MADALENA (OFF) Naquela noite, eu tive um pressentimento. Uma coisa idiota, que veio na minha cabeça. Eu pensei: nós nunca mais vamos transar. Até fiquei um pouco nervosa. Mas logo eu me acalmei e esqueci aquela bobagem. Amanhã ou depois, tudo voltaria ao normal.
Madalena fecha os olhos.
CENA 29 - SALA DA CASA E QUARTO DO CASAL/INTERIOR/NOITE
A família vê TV. Tá começando um filme de terror bagaceiro na TV. Aperecem os créditos iniciais, com uma música bem soturna. Na verdade, apenas Gilberto assiste, porque Caetano acaba de adormecer numa poltrona, e Madalena dá de mamar para a criança pequena, que, como sempre, pega no sono. Gilberto divide sua atenção entre o vampiro da TV, que admira o pesoço de uma bela mulher, e sua própria esposa, que nota o olhar do marido e sorri. Madalena coloca Lica no carrinho. Gilberto levanta e vai até a poltrona da mulher. Beija-a no pescoço. Ela gosta. Se abraçam. Se beijam. Toca a campainha.
MADALENA
(levantando-se e e indo para a porta) Deve ser a mãe. Ela disse
que ia trazer umas fraldas. É só um instante. Coitada...
Ela quer ver a neta.
Fade-in de imagem e de som. A velha está se despedindo, já na porta, e fala sem parar.
GILBERTO
(enquanto pega Caetano no colo e segue a esposa) Ele fica tão
alucinado com a falta de sangue que morde o próprio pulso. Aí
o idiota do professor Saknussen aproveita e empala o coitado.
Vemos Gilberto dirigindo seu carro. Logo depois, uma sucessão de atendentes de farmácia dizendo que não. Gilberto olha para prateleiras vazias, com uma expressão de vazio existencial. Voltamos a ver Gilberto dirigindo o carro.
Gilberto entra no quarto. É tarde demais. Madalena, Caetano e Lica estão em cima da cama. Os dois primeiros dormem profundamente. O bebê, ainda de bunda de fora, bem desperto, sorri para o papai.
CENA 32 - ENTRADA DE UM MOTEL/EXTERIOR/NOITE
Gilberto e Madalena estão na fila do motel, sábado à noite. Quando encostam o carro, aparece o aviso de "Lotação esgotada".
Gilberto e Madalena, dentro do carro, abraçam-se, beijam-se, etc. Quando estão prestes a começar, um carro da Brigada encosta. Descem dois brigadianos e pedem documentos.
Madalena numa rede, de biquini. Gilberto chega com duas casquinhas de chocolate com nozes. Senta ao lado de Madalena e entrega a casquinha dela. Olham-se. E então jogam as casquinhas longe. Gilberto vai pra cima. Um dos galhos da árvore que prende a rede cai. Os dois desabam no chão.
Madalena está fritando batatinhas, com um braço enfaixado. Gilberto chega por trás, com uma perna enfaixada, e a abraça.
CENA 36 - SALA DA CASA/INTERIOR/NOITE
A família toda vê TV. Inclusive a velha, que fala sem parar. Gilberto e Madalena, conformados, apenas olham um para o outro.
Gilberto está dormindo, enquanto Madalena amamenta.
Gilberto no quadro-negro, termina de rabiscar alguma coisa sobre Nelson Rodrigues. Vira-se para os alunos. A partir daí, câmara super-lenta, mostrando as seis meninas da primeira fila. Cada uma mais deliciosa, provocante e convidativa que a outra. Todas olham bem nos olhos dele. Parecem dispostas a tudo e mais um pouco.
Gilberto acorda de repente, com um grito meio engasgado, assustando a mulher.
GILBERTO (respirando fundo)
Nada. Nada. (E volta a deitar)
Um homem aparece bem na frente da mesa de Madalena. Eles se olham e, surpreendidos, sorriem. Ele é Alberto Jorge, antigo namorado de Madalena, que continua bonito e agora é ainda muito mais rico. Conversam. Combinam alguma coisa. Sentam juntos numa lancheria. Riem. Ele dá carona pra ela num BMW. Alberto Jorge está mais sedutor que nunca.
Giberto está manobrando para sair. E então vê, pelo retrovisor, uma das suas alunas (que também esteve no sonho) conversando com um garoto um pouco mais velho. De repente, ela o abraça. Ele a empurra tão forte que ela cai. Imediatamente Gilberto sai do carro e caminha em direção ao incidente.
GAROTO (ainda agressivo)
Não te faz de santa. Pensa que eu não tava sabendo?
GILBERTO (chegando)
O que é isso?
GAROTO (se fazendo de santo)
Nada não, professor. Briga de namorados, sabe como é?
GILBERTO (levantando a aluna do chão, irritado)
Não, não sei. Me explica.
ALUNA (olhando para o joelho, que sangra um pouco, e ainda chorando)
Deixa, professor. Não vale a pena.
GAROTO (já se escapado)
Amanhã a gente se vê. Tchau.
GILBERTO
Para aí. (E faz menção de ir atrás do garoto)
ALUNA (segurando a mão de Gilberto)
Deixa ele. Por favor. Eu só quero ir pra casa. O meu joelho
tá doendo um pouco.
Os dois no carro, olhando a vista da cidade, sem comer nada.
MADALENA (se fazendo)
Que festa?
ALBERTO JORGE
Aquela, que tu conheceu o Gilberto.
MADALENA
Hã...
ALBERTO JORGE
Sabe, durante anos, eu fiquei pensando naquela festa. E, eu tenho que
confessar, até hoje eu penso. A gente tava tão apaixonado...
Eu levei muito tempo pra te esquecer. E hoje, te olhando... Bom...
O carro de Gilberto estaciona.
GILBERTO
Então vou botar o carro mais pra frente.
ALUNA
Não. Eu queria conversar mais um pouco. Sabe... Eu acho que...
(E recomeça a chorar, agora apoiando a cabeça no colo de
Gilberto.)
Continua a conversa dentro do carro.
ALBERTO JORGE
Nem eu. Mas... Tu não concorda? Foi uma questão de detalhe.
MADALENA
Ou de destino...
ALBERTO (enquanto segura a mão de Madalena)
Ou de destino.
A aluna pára um pouco de chorar e recua o rosto. Mas, quando fala, está a poucos centímetros de Gilberto.
Alberto Jorge, sempre segurando a mão de Madalena, aproxima-se mais. Madalena parece em transe.
CENA 47 - CARRO DE GILBERTO/EXTERIOR/DIA
A aluna limpa as lágrimas. Olha fixamente para Gilberto, que parece em transe.
CENA 48 - BMW/EXTERIOR/DIA
Alberto Jorge entreabre os lábios, a poucos centímetros de Madalena, que continua em transe.
CENA 49 - CARRO DE GILBERTO/EXTERIOR/DIA
Aluna entreabre os lábios, a poucos centímetros de Gilberto, que continua em transe.
CENA 50 - BMW/EXTERIOR/DIA
Alberto Jorge vai encostar os lábios. E então Madalena sai do transe, recua, abre a porta e sai. Fecha a porta e fala:
CENA 51 - CARRO DE GILBERTO/EXTERIOR/DIA
Aluna vai encostar os lábios. E então Gilberto sai do transe, recua e fala:
Um táxi pára. Madalena sai correndo. Entra no edifício. O carro de Gilberto estaciona. Ele sai correndo e entra no edifício.
CENA 53 - HALL DO EDIFÍCIO/INTERIOR/DIA
Madalena pega um dos elevadores. Gilberto, logo depois, pega o outro.
CENA 54 - PORTA DO APARTAMENTO/INTERIOR/DIA
Madalena está abrindo a porta quando Gilberto também chega. Vão se beijar, mas a porta abre.
CENA 55 - SALA DO APARTAMENTO/INTERIOR/DIA
A babá está com Lica no colo. A mãe de Madalena faz gracinhas para ela, enquanto fala sem parar. Caetano está jogando vídeo-game na TV da sala. Gilberto e Madalena mal passam da porta e páram, aturdidos.
Gilberto e Madalena estão sozinhos na sala. Olham-se. Abraçam-se. Beijam-se. Tiram a roupa. E transam. Mais selvagemente que Michael Douglas e Sharon Stone em "Instinto selvagem". Mais filosoficamente que os japoneses de "O Império dos Sentidos". Mais explicitamente que todo o elenco de "A ilha das ninfetas taradas e dos sátiros insaciáveis - parte IV". A câmara roda, embriagada, em volta deles, enquanto a música, apoteótica, incomoda os vizinhos de todos os edifícios da quadra, até chegar num clímax dantesco e millerniano, ao mesmo tempo em que o jovem casal, como Adão e Eva, come, a mais não poder, dos frutos da árvore da sabedoria.
Fade-out de imagem e som.
CENA 56 - QUARTO DO CASAL/INTERIOR/NOITE
Fade-in. Madelena coloca Lica no carrinho, ao lado, da cama. Deita-se na cama, onde já estão Gilberto (lendo) e Caetano (dormindo). Empurra um pouco o filho pra conseguir se ajeitar. E então começa, bem devagar.
GILBERTO (lendo)
Que a tua mãe vem almoçar amanhã?
MADALENA
Não.
GILBERTO (ainda lendo)
Que a tua menstruação tava atrasada?
MADALENA
É.
GILBERTO
Que que tem?
MADALENA (sem jeito)
É um pouco mais do que isso.
CENA 57 - CRÉDITOS FINAIS