CACOS
por Dante Sasso
 
 
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arasepravereprasentiralgumacoisaquetalveznuncasentiu.
 
 
 
Caminhos
 por Dante Sasso
 
 
         Tomado por um vago desespero e protegido pela simples circunstância, percebi que há um momento em que devo me abster de tudo que em concreto se apresenta à minha volta. Pego todas as palavras que preenchem o espaço infinito que existe entre meus lóbulos e as torturo, até que eu sinta nos meus lábios e meus olhos o efeito que elas causam, até que eu escorra feito sangue nas paredes e nos muros que erguemos ao redor de nossos corpos. Pois sou pedra, a mesma pedra que é coberta pelo musgo esverdeado que habita as muralhas intangíveis de um poço. Eu sou feito de fraquezas, de desejos incansáveis e mordidas no pescoço. Na verdade tenho pouco a dizer, mas sei bem como fazê-lo. Não quero contar algo, mas preciso transformar tudo aquilo que foi dito há apenas cinco dedos de dezenas, anos virgens e perversos, e mostrar a algum desconhecido que a chance que eu tive só me vale se eu consigo emocionar ao comentar que essa chance vale a pena. Eu sou um universo, e tenho a falsa pretensão de achar que isso de algum modo me adianta. Pois se a verdade quando é dita me surpreende e me espanta, e chega ao ponto de tirar todo o sono que guardei pra gastar numa semana, é porque eu sinto medo do acaso quando sou tão maltratado pelas mãos nem sempre dóceis de um amante que me engana. Então eu fujo, sempre fujo do acaso, apesar de pressentir que ele volta, que ele gruda em mim como o asfalto derretido que eu piso logo logo que o vejo na estrada derramado, um asfalto que me toma de assalto e penetra em minhas veias pela agulha dos sentidos. Porque eu sei e você sabe que os sentidos não têm culpa, eles ferem e se arrependem, mas só voltam se acordamos e despimos nossos trajes e entregamos nossos sonhos a alguém tão perigoso e tão selvagem como fomos desde o início. E quando olho no espelho, no interior desta moldura que fiz dentro de mim mesmo, eu percebo que há coisas que não brotam do acaso, que despencam como chuva mas que um dia foram lago, pois minha vida é uma serpente que engole o próprio rabo, que suplica pelo vício e que corre pelo prado. E já que cruzo solitário e com certa displicência este meu caminho próprio, já que perco minha dor e entrego-me à sorte, já que tenho este sorriso por estar assim distante, quase perto de uma morte, sinto o corpo estremecer, e as estrelas de minha pele se afastam e se juntam e então gritam ao meu corpo que o destino é uma palavra que teria igual sentido se viesse de meus lábios e acabasse em tuas águas. É um caminho feito de angústias, de maldades necessárias e em mim enraizadas, que por virem de brinquedos que guardei quando criança já não chamo mais maldades. Um caminho que percorre a miserável existência que julgamos muito nobre, mas que ao fim de uma etapa se transforma e se revela tão vazia e dispensável quanto o céu que nos envolve. E me sinto destruído ao notar que tudo aquilo que eu penso, que eu falo e que transmito se encaixa tão perfeito nas pessoas que me ouvem, que me xingam e que me adoram, apesar de não saberem que têm tudo que eu tenho e mais um pouco, e mesmo assim não reconhecem e ignoram o quanto sofrem. É quando sinto este gosto agridoce em minha boca, são os dentes que já rumam para a flor dilacerada em meu rosto e que eu sei que ainda fascina. É tão fácil mastigá-los que prefiro engoli-los, pois assim eu tenho plena liberdade de guardá-los em meu peito e recorrer aos seus esmaltes quando encontro uma saudade que não curo nas esquinas, pois as putas que me param não agridem e não se igualam aos novelos e às teias que me guiam. E as palavras se repetem, se desmancham e seduzem, e se portam como açoites que castigam nossos ombros, que golpeiam nossas faces e perturbam nossas mentes, pois aquilo que não ouço mesmo imóvel segue em frente, se esparrama em versos fortes que parecem poesia mas com fúria dão o bote. Sou uma planta venenosa, e carnívora também, te espero num segundo e não sabes que te agrado, te possuo com vontade, te domino extasiado, devoro tua semente e te lanço em solo fértil, violento os pesadelos que se encontram acumulados no teu ventre e teu telhado. Sou um instante, um átimo de segundo que te escapa na janela, que procura na desgraça a mais profunda fantasia que um dia, em criança, te passou pela cabeça, e te levou para um lugar que já não mais te pertencia. Sou um amante, te exijo e me rebelo se decides ser sincero ao dizer-me que não foges, mas que parte rumo ao norte com o prazer de um fugitivo, para ver se eu resisto e se gosto do imprevisto. Mesmo assim não me completas, mas dá voltas no umbigo e me responde que não fica, que o momento de fingir já está maduro, em um país do Oriente, cheirando à flor-de-lótus e encharcado de aguardente. Te procuro, te encontro e te esgano, pois passou-se o meu tempo, mas na hora de rever-te eu percebo que me engano e que não vivo de migalhas, mas que estas, pisoteadas pelos vermes, são de fato necessárias. Passam anos de amizades, de abraços e de brigas, de azares incompletos, de saudades tão antigas quanto os frutos do deserto, quanto às lendas dos abismos que se achados são desfeitos, como cavalos de batalha que se perdem em nevoeiro que me ataca e me sufoca, que se agarra à minha garganta e me atira nos espinhos que plantei nas margens rasas de um rio imaginário, que de encantos está cheio, mas que corre ao contrário. Me dou conta que este escuro da matéria, essa massa tão disforme que se encontra em nossos corpos, a sujeira que nos forma e que bebemos nesta noite nos liberta e nos concede o mais puro dos delírios, a vontade de vivermos sem a pressa e com o risco de perdermos quando formos ao extremo e trocarmos esta vida pela outra que espera. E sem pressa eu sou capaz, mesmo sendo apenas um entre os demais, mesmo tendo meus anseios e despindo meus conceitos, me livrando das fogueiras que me cercam e me atingem, e que queimam as histórias que com custo eu desenhei para dar-te com orgulho, em papel amarelado, e para ver em teu sorriso esta marca de bondade que às vezes é infinita, e que às vezes, ao teu lado, se revela tão bonita quanto um mar iluminado. Fui tão fraco ao esconder todo o resto do meu ser, todo o mal que relutei em te mostrar e que um dia infelizmente tentarei me acostumar, pois há brinquedos que quebrei, mas há outros que guardei junto à bola de cristal, como peças de um jogo que me leva ao começo, onde tudo tem seu preço, e onde tenho a impressão de que nunca voltarei, pois eu sinto o mesmo gosto que senti quando fui um animal. São bonecas em pedaços, porque são de porcelana, são relógios de parede bem em cima de minha cama, são soldados construídos de um chumbo tão pesado que derreto-os no porão de minha casa para não ser mais trancado em um sótão envidraçado, que revela-me os pássaros que não podem ser tocados pois recolhem suas asas. Revelei-me tão vazio que a vontade de mostrar-me foi mais forte que o espaço que preenche minha alma, porque o receio de contar o que por certo não importa é mais frio e mais amargo do que a porta que eu tento derrubar e não consigo, mas que um dia se abrirá e me dará o seu abrigo. E se um dia encontrares um caminho, e achares que o caminho aos teus pés é o verdadeiro, não te assuste se eu disser que o caminho não existe. Pois mesmo que encontres no caminho um santo homem, te despede ou então mata esse homem pra livrar-te de um encanto: o caminho que encontrares serve só para esse santo.