K. e Milton Morelli No Polvo 
Por Gustavo “Mini” Bitencourt

 
Primeiro

Preparei um sanduíche antes de sair. Abri o pão com as mãos mesmo e arranquei o miolo, um pedacinho mole e apetitoso em que passei manteiga. Ela derreteu e espalhou-se pelo micropedaço. Engoli inteiro.

Depois procurei umas calças folgadas que eu tinha em algum lugar e vesti-as. Por cima foi uma camiseta branca e nos pés um tênis de skate que eu uso. Sempre compro tênis de skate porque são projetados para agüentar skatistas. E eu não sou skatista. Assim eles duram pelo menos três vezes mais. O baixista da minha banda, que anda de skate, disse que andar de skate destrói muito os tênis.

As minhas caminhadas não eram nada comparadas a uma sessão de skate.        Uma vez eu estava caminhando pela grande avenida próxima à minha casa com uma pequena garrafa de cerveja bock. A temperatura estava caindo um pouco em pleno outubro.

Eu me sentia extremamente cansado e tudo que conseguia pensar era se existia algum significado especial na coincidência das iniciais do meu nome.

M.M. Milton Morelli.

Era dia ainda. O horário de verão privilegiava as oito horas da noite com um banho de luz que só a cidade de Porto Alegre sabe existir. Andei mais algumas quadras e comecei a conversar com meu amigo imaginário, que aparecera do nada para caminhar ao meu lado. Ele sempre dava umas voltas comigo e tínhamos longas conversas sobre qualquer coisa. Quando me cansei dele, joguei a garrafinha no meio-fio e fui para o Polvo. O Polvo, assim como todo o resto da história, é um capítulo à parte.

À Parte

Não é o meu bar preferido. Mas é onde vão as minhas pessoas preferidas. Algumas delas, as que morreram, estampam as paredes. Não são simples retratos. Os clientes mortos geralmente cedem ao Polvo todos os direitos sobre sua pele. Assim, as paredes do Polvo são recobertas com uma fina camada de pele morta de ex-clientes num emplastro orgânico em tons de vermelho. É uma espécie de papel de parede laranja-marrom com relevo.

Os amigos mortos ficam ali sempre nos rondando. Talvez seja por isso que eu me sinta tão em casa quando vou ao Polvo.

Uma das piadas de mau gosto do Polvo: dizem que lá as paredes têm ouvidos - literalmente!
 



Segundo

Dessa vez cheguei cedo ao Polvo. O bar abre para o público apenas à meia-noite, após doze sonoras badaladas do relógio incrustrado na fachada. Mas enquanto o povo se acotovela lá fora, os Escolhidos, clientes preferenciais como eu, já estão bebendo há pelo menos três horas.

Foi assim naquele dia. K. e eu chegamos praticamente juntos sem termos combinado. Ela vestia preto dos pés à cabeça, muito elegante e sexy. Eu, ao menos, de cabelo cortado. Acendi um cigarro antes de pedir a bebida.

“Não combina contigo” disse ela apontando para o cigarro.

“Você também não” respondi olhando para os lados. O garçom chegou. Pedi um Safari, coquetel à base de sangue de animais africanos. K. pediu Cuba Libre, um destilado feito com sangue de cidadãos cubanos capturados tentando fugir da ilha de Fidel. K. preferia os drinques preparados com sangue humano. Para mim não fazia muita diferença desde que embebedasse.

Os copos (manufaturados com vidro mastigado por nativos da Ilha Ilka) logo chegaram transbordando e escarlates. Brindamos, bebemos um gole e batemos um papo.

“Acordei com uma vontade imensa de te matar” disse K. Era uma antiga mania.

“Você não teria coragem” desdenhei sem muita convicção.

“Vai pensando assim. Dormi na casa da Ana Paula. Ela tem um punhal inca interessante. Fiquei brincando com ele e imaginando se combinaria com as suas entranhas”.

“Você não co nseguiria me matar, K. Talvez enfiasse a faca...

“Não é uma faca. É um punhal ritualístico.”

Eu sorri.

“Certo... talvez você enfiasse o punhal ritualístico em mim algumas vezes. Mas eu leria o arrependimento nos seus olhos antes de você me levar ao pronto-socorro”.

Ela riu olhando para baixo, como se não acreditasse que eu não a estava levando a sério.         “Aliás, eu não deixaria você me matar" continuei. “Digamos que sim, que você me apunhalasse com certa... insistência... numa noite dessas no seu apartamento. Ok. Mas ainda assim eu encontraria forças para cambalear pelo corredor até o janelão da sala e me jogar, percorrer cinco andares, bater contra o asfalto da Felipe Camarão e ser atropelado por um ônibus circular. Só para não te dar o prazer de você acabar com a minha vida.”

Dessa vez ela apenas sorriu, ainda mostrando certa descrença no meu pensamento. Deixamos por isso mesmo e a conversa morreu ali. Ficamos bebendo silenciosamente e apenas nos acariciando as mãos durante certo tempo. Acabei meu copo e pedi outro Safari. Quando o garçom saiu, ela olhou nos meus olhos. O assunto ressucitou.

“Se eu me cortasse, você beberia meu sangue?”

“Claro.”

“Mesmo?”

“Tô dizendo.”

“Duvido.”

“Corte-se agora que eu faço.”

Ela olhou para os lados. Essas coisas não eram permitidas no Polvo. Se abraçou à bolsa e me puxou enquanto levantava.

“Vem. Vamos fazer no banheiro.”

Subimos as escadarias feitas de ossos de operários mortos em acidentes de trabalho e fomos em direção ao banheiro privê dos Escolhidos. Esbarramos em alguns conhecidos pelo caminho mas não demos muita atenção a ninguém. Aguardamos duas ou três pessoas usarem o banheiro, sempre saindo com suas seringas sujas de sangue, e então entramos.
 



Terceiro

Éramos quatro: K., eu e os nossos reflexos no imenso espelho avermelhado pela luz rouge do teto. Sentei n a privada com a tampa fechada e acendi um cigarro. K. vasculhava sua bolsa à procura de algo. Logo encontrou. Era a faca da casa de Ana Paula.

“Você roubou a faca da Ana Paula?” perguntei antes de soltar a fumaça.

“Não, idiota. Pedi emprestado. E é um punhal ritualístico, não uma faca.”

“Então você já planejava eu chupar o seu sangue?”

“Não, idiota. Planejava o seu assassinato.”

“Claro. Tinha me esquecido.”

Ela deixou a bolsa cair no chão, deu o punhal para eu segurar e começou a arregaçar a manga do braço esquerdo. Quando acabou, tomou o punhal de volta. Apaguei o cigarro.

Ela me olhou de novo nos olhos. Aliás, o que ela mais fazia era me olhar nos olhos. Eu adorava.

“Coloca a boca assim que eu cortar.”

Empunhou a faca. Antes de cortar, aproximou-se e mordiscou meu lábio inferior. Sorrimos. Cerimoniosamente ela passou o punhal pelo antebraço. Antes que o primeiro filete de sangue escorresse, abocanhei-o. Levantei os olhos sem deixar de chupar. Ela estava olhando também. Eu não estava engolindo, mas quando minha boca ficou cheia de sangue, fui obrigado a mandar goela abaixo uma boa quantidade de sangue fresco.

Não sei se eram as circunstâncias, mas comecei a ficar meio bêbado à medida em que engolia. Até que uma hora ela ela puxou o braço.

“Chega” disse.

Limpei os lábios com a minha camiseta, sentei me atirando num canto do banheiro. Ela apertou o braço mas o sangue não parava de sair. Olhei para o chão. Vindo de suas roupas já encharcadas e avermelhadas, o sangue fazia uma poça grande no chão. Eu mesmo, agora me dava conta, estava sentado em sangue. K. ficava cada vez mais branca. O sangue parecia ansiar por fugir de seu corpo, ávido por uma voltinha. Fui me levantar, mas minhas pernas não obedeceram por causa de um entorpecimento estranho.
 



Quarto ou final

Vi meu reflexo no espelho. Estava ficando tão branco quanto K. Branco apenas em termos, porque na verdade o sangue já formava um pequeno córrego no chão e empapava nossas roupas de vermelho. E não era apenas o sangue dela, mas o meu também! Minhas costas doíam muito. Aí percebi: enquanto chupava o sangue de K., ela havia me cortado também.

“Você é foda” murmurei. E ri.

Ela estava divertindo-se com a cena. Nós nos esvaíamos em sangue, borbulhando e gargalhando alto. Em meio a algumas risadas, tossíamos engasgados e batendo com galhofa às portas da morte.

Ela foi-se segundos antes de mim. A última imagem, a que ficou, foi do sangue escorrendo da sua boca. Mais parecia batom. Dei um último beijo nos seus lábios cerrados e caí com a cabeça em seu peito.

Mesmo depois que tudo escureceu, fiquei pensando onde, nas paredes do Polvo, colocariam a nossa pele.