O RATO
por Simone Marques
 
 
Ele deixa a casa de sua garota e segue pela Riachuelo, em direção à João Pessoa, onde pegará um ônibus que o leve até as proximidades do bairro Santana, onde reside. Ainda tem a fresca lembrança dos beijos de Paulinha, o último abraço antes de sair à rua e enfrentar a madrugada úmida de 9ºC. Enrola o cachecol cor de abóbora ao pescoço e acende um cigarro. O andar é quase um ulular: não caminha, desliza de modo felino, calmo, como se não existisse nada mais adiante que o próximo passo. Põe o pé na Borges de Medeiros, a esta hora um ermo.

Perder um pênalti é como murchar na hora agá, uma broxada. Ele pensa no jogo do fim-de-semana, no qual engoliu cinco frangos.

Ao ganhar a João Pessoa, um rapaz envolto num jaquetão e cara de quem o mundo deve tudo, vem em sua direção. Pergunta a hora. Ele diz que não tem relógio e prossegue seu caminho. Sente vontade de correr, mas prende o passo e controla os pensamentos. O asfalto reflete a água que cai da noite, em garoa. A sinaleira circular de uma viatura da BM dobra e desce a Vigário José Inácio. Não é paz nem segurança, mas mais um alerta o que lhe traz a visão do carro da Brigada Militar. Decide que não pegará o ônibus e vai seguir a pé pela avenida até chegar à Independência. E dali, descer a Barros Cassal até a Osvaldo Aranha, e só então tomar a condução. Deve levar mais tempo, mas, pensa, é mais seguro.

A vida é imprevisível, mas os acontecimentos podem ser premeditados por nossas entranhas. E também por pequenos detalhes, uma lata chutada de repente, uma buzina, uma palavra, elementos que trazem o aviso.

Alcança a praça de acesso à avenida Independência. Assustado ou com muita pressa, um rato sai de trás de uma lata de lixo e sobe o declive de terra que sustenta o viaduto da Annes Dias. O rato, um augúrio. Ao passar pelo Bar Líder, onde esteve poucas horas antes com Paulinha, bebendo chopes e falando amenidades, sente saudade. Algo paradoxal, já que em questão de horas vai encontrar sua querida novamente.

“Afinal de contas, a desgraça é sua e não nossa. É sua a morte... E sua morte está no fundo de nossas vidas, alheia e tranqüila, e nós, vivos, a recordamos; vivemos de recordá-la quando ela não mais existe, quando nunca existiu para aquele que está morto.”*_

Já desce a Barros Cassal e começa a sentir-se mais seguro, quase tranqüilo. Até nutre a idéia de encontrar por acaso um amigo, o Léo quem sabe. Chega à Osvaldo Aranha e se planta na parada de ônibus. Mais um cigarro. Um São Manoel aponta seus faróis corredor afora. Afinal, é o seu ônibus. Sorte, pensa.

Embarca e senta-se dois bancos atrás do motorista, do lado esquerdo. Lê o cartaz da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, sobre o Orçamento Participativo. Logo acima, um adesivo: “O destino é a armadilha do homem. Só Jesus Cristo protege. Confia e ora.”

Ele não contém o riso. Destino? Lembra Einstein e a teoria da relatividade. Que no Universo há sempre duas alternativas, duas realidades paralelas. Que o pensamento atrai a energia atômica inerente a tudo. Destino, não.

Possibilidades. Se naquela noite chuvosa e fria de maio não tivesse chegado a boca bem próxima da de Paulinha, talvez ainda estivesse por aí, a prender uma paixão contida, como aqueles gases que não podem ser soltos devido à inconveniência do momento. Isso é relativo, isso é lógico, embora louco. E fascinante.

Suspendeu o fluxo de idéias com o barulho feito pelos pneus do ônibus gritando ao arranhar o asfalto úmido. Foi jogado contra os bancos do lado direito e, em algo menos que segundos, seu corpo é arremessado à frente; a cabeça explode pára-brisas afora.

Do outro lado da cidade, a garota está imersa no sono, aconchegada ao seu cobertor de lã cor de doce-de-leite.

O carro que o coletivo colheu é um emaranhado de metal e restos humanos.E perplexo, o cobrador desce do coletivo, e vê que nada pode dizer ou fazer. Senta na calçada e apenas chora. Paulinha é repórter de Polícia do Correio do Povo e tem plantão esta tarde. Ele não veio almoçar, como combinado. Também não ligou. Aborrecida, dormiu boa parte da tarde. Chega na redação e, ainda letárgica, liga o computador, verifica a caixa de correspondência. Nenhum e-mail. Vai até outro terminal e dá uma olhada nas últimas notas da Agência Estado. Tudo velho. Então, apanha o bloco e a caneta, serve um copo de café – ao menos isso é novo! – e debruça-se sobre o telefone. Liga para a Polícia Civil, Bombeiros, polícias Rodoviária Federal e Estadual, Brigada Militar e suas fontes indubitáveis. Desliga o aparelho e sorri; enfim, alguma coisa aconteceu! Senta e começa a redigir suas notas, que grande parte dos leitores lê com avidez.

Na manhã seguinte, na página policial do Correio do Povo, nota de dez linhas informa sobre acidente acontecido na madrugada, na avenida Osvaldo Aranha, proximidades do Hospital de Pronto Socorro, onde morreram na hora os motoristas do ônibus São Manoel e de uma Parati; entre aspas, o depoimento do cobrador. A última linha da notícia informa que houve mais uma vítima fatal, do sexo masculino, ainda não-identificada. Paulinha ainda está à espera de uma desculpa do seu rapaz, o do cachecol cor de abóbora.

* Beauvoir, Simone; in Le sang des autres.