RONALDO
um conto de Nelson Nadotti
 
 
Ronaldo é o homem correto, mas romântico - no mau sentido. Ama sua mulher, sim; o problema é que se deixa levar pelo excesso de bons sentimentos. Trinta anos, vivendo no Rio de Janeiro, taxista, Ronaldo achou uma mala cheia de dólares no banco de trás de seu veículo. Lembrou da turista francesa que deixou no hotel, foi em busca dela e devolveu a mala com todos os dólares. Ronaldo não recebeu recompensa nenhuma. Mas saiu no jornal, que elogiou seu bom comportamento. Foi parar na TV, deu entrevistas, seu nome ficou conhecido até no estrangeiro como exemplo de decência. Lhe deram uma medalha de honra ao mérito.

Mas todo dia, quando Ronaldo chega em casa, sua mulher conta a féria que ele conseguiu trabalhando duro - e é sempre pouco, nem mais nem menos. O pior é que Ronaldo não pode pegar nenhum passageiro sem se apegar àquela imagem cristalizada pela opinião pública: ele não rouba passageiros. Por exemplo: se Ronaldo não tem o troco certo para dar ao passageiro, ele arredonda o troco para cima, cobrando menos que a tabela. Todo taxista faz o contrário, arredonda a tabela e não o troco, mas Ronaldo morre de vergonha de ser apontado como o herói que ficou safado.

E tem mais: seus pais não entendem o que foi que ele fez de mais, devolvendo a mala de dólares. Seu pai acha que Ronaldo agiu da forma mais óbvia do mundo, pois foi educado assim, aprendeu que roubo é uma coisa horrível. Agora lhe dão uma medalha porque ele não roubou? E quantos por aí não roubam e nem por isto recebem medalhas? O problema não é que deveriam dar medalhas pra todo mundo, e sim deixar isso pra lá. Não se comemora o que é normal. Ou será que já não é normal deixar de roubar? Seu pai se irrita de tanto pensar. Ronaldo fica chateado, entende que seu pai acha que ele deveria ter saído de fininho, em vez de se expor àquela frescura, àquela paparicação inútil, e isso é uma vergonha, é pura vaidade. A mãe de Ronaldo não diz nada, continua tirando o pó da sala, seu filho é um homem de bem, mas ai dele se não fosse, ia matar seus pais de desgosto. Vida de classe média é terrível, não dá nem para ser herói em paz.

E há outras conseqüências: todo dia, Ronaldo vai trabalhar e ficam aquelas meninas da esquina paquerando ele, jogando charme, chamando Ronaldo para ir no baile funk. Claro que Ronaldo nunca irá no baile funk, ele sabe que elas falam aquilo de sacanagem, para tripudiar, para tentar o todo-certinho Ronaldo, aquele que jamais trairá sua mulher, porque ele é um herói, reconhecido por todos, e a última coisa que ia querer era aparecer na manchete de "A Notícia" como "Taxista cuzão passa pica a rodo". Mas as meninas ficam lá, shortinho curtinho, nádegas se exibindo, vaginas lancinantes no meio-fio, alucinando o pobre Ronaldo.

A gota d'água, porém, é a mania que a vizinhança criou de chamar Ronaldo para intervir em qualquer desavença. Acham que ele é o xerife, o doutor sabe-tudo, o cruzado sem máscara. E dê-lhe Ronaldo apartando briga de casal, liderando passeata contra os freqüentes atropelamentos na rua, enfrentando bêbados que perturbam senhoras. Volta e meia, Ronaldo chega em casa com um galo na testa, um olho roxo. Já levou bala, que por sorte não pegou.

E a mulher controlando a pouca féria, e louca por saber mais ou menos, assim por alto, quantos dólares havia naquela mala. E o que fariam com os dólares, se não tivessem devolvido a mala? Comprar apartamento, viajar, pagar colégio para os filhos no exterior, cartão de crédito internacional, carro importado, um salão de beleza para a sogra, uma assinatura de "O Globo" para o sogro... Ainda ia sobrar dinheiro para ir ao Mariu's de Madureira e comer carne até cair de quatro naquele chão engordurado por seculares picanhas gaúchas.

Pensativa, esta mulher de Ronaldo. Dúvidas voejam feito varejeiras em volta da mulher. Pra que viver assim, neste inferno cotidiano? Foi pra que isso que ela casou com Ronaldo? Amar seu marido incluía isso? Será que isso é isso mesmo? Seria a vida sonho, dependendo de que sonho se escolhe? Sonhos de glória, para uns; sonhos de riqueza, para poucos? A mulher não gosta de pensar, mas pensa, pensa até demais, e desconfia que Ronaldo talvez tenha optado pelo sonho errado. Um dia, Ronaldo vai pegar um passageiro de mau humor (a mulher pensa, ela não gosta de pensar, mas pensa), um passageiro que vai reclamar do troco, injustamente. E aí tudo vai desandar. Pois não é que foi só a mulher pensar e isto aconteceu? Ali está o passageiro se queixando que Ronaldo está cobrando a mais, levando seu troco. Pobre Ronaldo, só leu mal a tabela, precisa de óculos novos, mas cadê dinheiro pra isso? Quando Ronaldo se desculpa, dizendo que ele jamais roubaria o passageiro, porque ele é aquele taxista que devolveu a mala cheia de dólares à turista estrangeira, o passageiro olha bem para Ronaldo e pergunta: e daí? O passageiro nunca ouviu falar de Ronaldo, só acha que ele é um safado se fazendo de sonso, e sai batendo a porta onde Ronaldo colou o adesivo "Obrigado por não bater a porta".

E Ronaldo vai descobrir que nem todos lembram que ele é o famoso Ronaldo, o imbatível, o campeão da moralidade. E nem por isto ele vai ter coragem de roubar, porque alguém pode lembrar e será aquela vergonha, jornais denunciando seu abuso, "quem ele pensa que é?". Mas o fato é que ele não pode roubar, e já não desfruta de prestígio. E chegará ao terço final da vida, depois dos 45, constatando que foi honesto a vida toda, sem juntar dinheiro nenhum, e agora ninguém lhe dá mais bola, nem as meninas da esquina, mesmo porque elas já cresceram e o ritmo da moda há muito deixou de ser o funk.

Agora, Ronaldo pensa na mulher e nos filhos. Pelo amor que tem por eles, deve fazer algo antes que seja tarde. Sim, sua mulher será grata pela atitude que ele resolve tomar, e, mais do que nunca, o amor entre eles será mais forte que tudo e vencerá, apesar de tudo. Sempre romântico, este Ronaldo. Então, ele vira para a mulher e diz que gostaria de ir embora dali, não agüenta mais aquela cidade de merda, onde nada presta e os certinhos estão errados. A mulher ergue os braços para o céu, dá graças a Deus, vão mudar de vida. Ronaldo vende tudo, põe numa mala grande, se muda com a mulher e os filhos para uma progressista cidade ao pé do Pico da Neblina, nos cafundós do interior do Brasil. Só que, na viagem, a mala com o dinheiro se extravia.

Ronaldo e a mulher entram em desespero. A mulher obriga Ronaldo a ir ao jornal da cidade contar o que aconteceu, afinal ele ainda deve ser reconhecido por alguém, ele é o famoso Ronaldo e só tem que pedir que devolvam a mala. É o que Ronaldo faz, e imediatamente se torna uma celebridade na cidade ao pé do Pico da Neblina. A população em massa sai em busca da mala extraviada. Mas nada da mala aparecer. E aí acontece o desagradável: um repórter da TV desembarca na cidade, querendo saber o que é que Ronaldo foi fazer ali, e por quê abandonou o Rio de Janeiro. Ronaldo desconversa, mas a mulher perde a paciência e conta a verdade: o Rio é uma merda, e diz ainda que esta não é só a opinião dela, é a opinião de Ronaldo também. Lá no Rio só tem ladrão e gente mesquinha, uma falta de respeito total. E o imbecil do Ronaldo durante anos ficou posando de Madre Joana de Calcutá carioca, pra quê? Pra acabar no pé do Pico da Neblina com uma mão na frente e outra atrás.

Ronaldo fica vexado com o comentário da mulher, o repórter põe a matéria no ar e a repercussão é péssima: todo o povão do Rio acha que a glória subiu à cabeça de Ronaldo, quem diria, a gente que achava que ele era gente fina, era um tremendo safado, se achando melhor que todo mundo, um grande filho da puta, isso é que Ronaldo era, pisou na bola legal, coitado do Ronaldo se voltasse pro Rio, ia levar uma surra inesquecível.

Naquela noite, depois de ver a matéria na TV, Ronaldo dá um sabão na mulher, que é que ela tinha que falar por ele? Mulher metida! A entrevista era com ele, ele é que era conhecido, ela não era nada, abriu a boca e acabou com a única coisa que ele ainda tinha, a vergonha na cara. O pessoal da progressista cidade ao pé do Pico da Neblina, agora, não vai mais ajudá-los, pois até parece que Ronaldo e seus familiares vieram ali por algum interesse; aliás, ele já ouviu o boato de que a tal mala extraviada por Ronaldo não tinha dinheiro nenhum, que Ronaldo inventou aquilo para dar um golpe, e ninguém mais vai procurar a mala perdida.

A mulher ouve todo o sabão, pega sua bolsa e vai embora. Pra onde? Por aí, vai dar o rabo pra não morrer de fome, vai roubar, vai ser uma filha da puta, vai fazer tudo menos ser otária feito Ronaldo. E a mulher larga Ronaldo, acaba trabalhando num bordel de beira de estrada, vira meio profissional, meio escrava branca, mas e daí, caguei, foda-se, é tudo uma merda, mesmo.

Ronaldo agora vaga pelo sopé do Pico da Neblina feito mendigo, três filhos a reboque, trabalhando por um prato de comida que é disputado por quatro. Quando os três filhos morrem de tifo, ele tem de empenhar a última lembrança de uma coisa que ele já não lembra bem o que era mesmo: a medalha de honra ao mérito, que não vale muito, quase latão, mal dá para pagar um caixão de pinho, e ele empilha três crianças ali dentro, três-em-um macabro.

É isso aí, Ronaldo, vida que segue. Agora, você está livre, já não tem mais nada que te prenda. Aliás, Ronaldo já nem se lembra do próprio nome, nem o que está fazendo ali, nem que lugar é aquele, nem que língua se fala, nem o que é dinheiro, nem o que é riqueza, muito menos o que é glória. Agora, só falta Ronaldo se iluminar, porque Deus é justo e verdadeiro, e Ronaldo não pode morrer feito um bosta sem que alguma coisa justifique o martírio por que passou. Ainda assim, se ficar tudo como está, tudo bem, porque Ronaldo também não sabe mais o que significa um martírio.

Mas quem é que sabe o que é um martírio? Os que vivem numa cidade sem lei feito o Rio de Janeiro sabem o que é martírio? Não, não devem saber, pois se soubessem já tinham se levantado numa revolta popular. Ah, talvez a turista francesa, aquela que foi procurada por Ronaldo para devolver a ela a mala cheia de dólares esquecida no táxi, talvez a turista francesa saiba o que significa a palavra "martírio", obviamente em outra língua que não a portuguesa. Mas a turista francesa nunca mais será encontrada para responder, pois já foi embora do Rio há muito tempo e agora vive feliz num cantão suíço, desde que enriqueceu graças aos dólares que ganhou, inesperadamente, de um cavalheiresco motorista de táxi naquela distante viagem ao Rio de Janeiro. A turista até hoje não entende por quê os nativos do Rio têm este estranho, galante e romântico costume de dar malas cheias de dólares para turistas, principalmente para uma turista francesa pé-rapada como ela que não tinha mala nenhuma cheia de dólares nem tinha entrado no táxi daquele motorista, um tal Ronaldo.