A TELEVISÃO ME DEIXOU ASSIM
por Marcelo Carneiro da Cunha
 
 
Eu tinha ido até essa escola em um lugar remoto da região Sul de Porto Alegre, escola estadual de periferia, o muro tinha um toque de Sing Sing, portão de aço, duríssimo.

Na sala, auditório, havia uma televisão e um vídeo, um conversor de parabólica também, eu acho. Isso eu já conhecia, é claro. Não era esse o problema, claro que não. Era o resto. Nada daqueles suportes que a gente vê em parede de quartos, meio que acima e de lado. Nada de uma simples mesa, televisão e vídeo em cima, rodinhas em baixo. Mas sim uma jaula, jaula minha gente. Pra tigre de bengala, urso canadense, leão africano. Tanta barra de ferro que devem ter devastado uma montanha mineral na Amazônia pra produzir aquele gradil todo.

Lembrei do que mais a jaula me lembrava. Aqueles coitados em filmes sobre a Idade Média, colocados dentro de uma jaula pra morrer lenta e muito dolorosamente enquanto o povo lá em baixo assistia, durante uma ida ao mercado, à missa, aos jogos.

Nunca se soube o que teriam feito pra merecer um castigo tão infame, e eu me peguei pensando sobre o que teria feito aquela televisão, o que afinal teria feito a maldita pra merecer uma punição tão exemplar. O Jorge Furtado, em uma edição anterior do Não, falava sobre um suposto julgamento da humanidade, com um ser humano qualquer na posição de testemunha-chave do processo, e o júri ali debatendo se a Terra ia pro trono ou pro espaço.

Se agora fosse a televisão a ré, e eu o júri, eu metia a diaba na jaula ou deixava por aí, vivendo como uma pessoa qualquer, que afinal apronta boas e más ações de vez em quando.

Um júri formado por mim. Podendo e devendo julgar. Com a autoridade de quem viu nascer a coisa ruim, assistiu Patrulheiros Toddy na tevê do vizinho, em São Francisco de Paula, 1959-60, três pátios e muita escuridão enfrentada pra chegar até o mundinho na tela p&b, privilégio de muito poucos então, mais ou menos como a psicanálise dos dias de hoje.

Sheik de Agadir, alguém aí ainda faz idéia do que era uma novela nos anos 60, antes do Beto Rockfeller e aquele sotaque paulistano? Rosa Rebelde, com Glória Menezes no papel de cigana, Tarcísio Meira de oficial espanhol, ou francês. Redenção. Tânia gosta de Mário.

A gente viu Carlos, o vigilante rodoviário e seu cachorro Lobo, indo pra cima e pra baixo pela Dutra, acho que uma das poucas coisas asfaltadas lá por 61, pálida imitação de seriado americano, mas em película, em película!

Aquela tevê não ia pra jaula, não mesmo, a não ser na condição anêmica de miquinho amestrado. Não fazia mal a quem quer que fosse, minha gente, e muito cedo, muito, mas muito antes do que qualquer dos meus sobrinhos pós-modernos pense em ir pra cama, lá vinha ela, de vela na mão, sussurrar pra gente que tava na hora de dormir, não espere a mamãe mandar. Cobertores Parahyba.

Nacional Kid contra os Incas Venusianos, quem seria capaz de sentir medo de algo tão meigo e ainda por cima cantado em japonês?

Terror era Perdidos no Espaço, plantas em forma de mulher, ameaçando aquele Dr. Smith meio viado que nos apresentavam como a encarnação do mal. Deus!

Ultraman e suas questões tecnológicas, que uma boa pilha Duracell resolveria num instante, quantos heróis com problemas escassos preenchiam nossas tardes.

Não, mil vezes não. Aquela tevê não mereceria um tratamento tão desumano, presa a uma parede, atrás de grades impenetráveis. Qual tevê mereceria então? Não aquela que nos trouxe uma nova concepção de tempo e distância, em 68, acho, Brasil e Inglaterra, ao vivo, AO VIVO, desde o Maracanã!

Pausa. Quem só conhece tudo ao vivo não conheceu o mundo que eu conheci, não pode julgar a tevê em sua plenitude. Um mundo onde a novela das 8:00 tinha saído do Rio dias antes, em videotape. Ao vivo significou uma mudança para a qual nenhum de nós estava preparado, e finalmente trouxe um sentido para a palavra satélite.

A tevê de então, caros amigos, era a precursora de um maravilhoso mundo novo, em p&b, temos que admitir, mas ao vivo!

A Copa do México, 1970. Posso fechar os olhos e ver tudo diante de mim. Quantos de vocês podem dizer o mesmo, fazer o mesmo? Cinco, quatro, três, dois, um. Pra frente Brasil, do meu coração.

Em 66, tínhamos escutado o desastre pelo rádio. Uma coisa indigna, nem ao menos podíamos sofrer de um jeito correto. Um rádio, um alto-falante preso a um poste, era tudo o que tínhamos para tentar atingir uma compreensão do que faziam Eusébio e sua malta ao nosso Pelé. A nós todos. Em 70 pudemos viver a glória, e quem nos trouxe isso foi ela, e se fosse por esse momento, eu seria o primeiro a buscar um maçarico e um cortador de ferro pra tirar aquela televisão do lugar horrível em que a tinham colocado. Liberté!

Mas teve mais, e então começa o desconforto, a suspeita de que talvez aquela Philco ali em cima tenha tido algo a ver com o que se passou. Se não ela então as suas avós, monstros em 26 polegadas e móveis de madeira nobre, objeto do desejo de todo mundo que conseguia ver alguma coisa em 72, 73, por aí. Primeiras televisões em cores, e já mostrando um mundo tinto de Medici, Geisel, essas coisas.

Nesse tempo, se lembro bem, o Jornal Nacional tinha uma abertura ao som de Pink Floyd. Isso diz tudo ou quase tudo. Um tempo onde a Globo tolerava Pink Floyd era outro tempo, era outra tevê, que não essa..Um dia mudou a abertura, Hans Donner entrou na parada. Ganhamos uma estética toda nova, em acrílico, perdemos Pink Floyd. Começou aí, acho. O golpe de 77, a lei Falcão, a Seleção de 74, a de 78, o horror. Pausa pra 82, Telê e o PT, mas uma pausa apenas.

84 e as diretas. A Globo resistiu o quanto pode, passou a mostrar quando já estava sendo apedrejada. Tancredo. Collor. Edição do debate com Lula. Xuxa. Ratinho. Latininho.

Olho pra aquela grade, e ela desaparece, invisível. Não são as grades do lado de fora que me incomodam mais, por mais que insultem a nossa sensibilidade. Há outras grades, e outra eleição chegando. E aquela coisa ali em cima vai ter muito que dizer, muito que fazer. Aquelas grades não vão fazer a menor diferença. Elas não seguram o bicho que vai ali dentro, nunca poderiam.

Motivo pelo qual eu dobro a dose de whisky enquanto encerro o texto. Não sou eu, não somos nós o juri, que ousadia termos pensado que dava pra julgar a coisa ruim. Desculpe Dona Marluce. Loucurinha do momento. A gente promete que não se mete com a senhora, não mesmo. E pensando bem, que mal faz uma jaulinha de vez em quando? Serve pra colocar as coisas em perspectiva.

E eu penso em um poema do Robert Frost, que dizia mais ou menos,

“Antes de construir um muro eu quero saber

O que estou murando dentro e murando fora.”

Sorry, Dona Marluce. O muro é todo seu. E o meu lado é o de fora.