Giba Assis Brasil, 16/08/98
Uns dez anos atrás, num debate sobre cinema brasileiro em Caxias do Sul, uma pessoa do público me perguntou: "Por que todo filme brasileiro sempre tem cenas de sexo?" Já era provavelmente a décima vez que eu ouvia esse tipo de pergunta, mas talvez naquele dia eu estivesse mais irritado do que de costume. Então eu respondi com uma digressão: "Engraçado como ninguém pergunta por que todo filme americano sempre tem cenas de morte." Trata-se de uma simplificação, é claro, mas se é possível dizer algo como "todo filme brasileiro tem pelo menos uma cena de sexo", eu também posso dizer, talvez com mais razão, que "todo filme americano tem pelo menos uma cena de morte." E eu prossegui, dizendo que não entendia por que se reclamava do sexo e não da morte já que "o sexo é um elemento muito mais presente na vida da gente do que a morte". E concluí, de forma provocadora e até certo ponto cafajeste: "pelo menos na minha vida."
De dez anos pra cá, diminuiu bastante a reclamação sobre o sexo no cinema brasileiro, o que é bom. Mas voltou a velha reclamação sobre a violência no cinema em geral. Espero que eu não seja, ainda que residualmente, culpado por esse mudança de enfoque. Na verdade, como normalmente acontece, o assunto é pautado pela mídia norte-americana, está presente em jornais, revistas e programas de televisão e mesmo em debates no Congresso. Ontem à noite, pesquisando num dos mecanismos de busca da Internet, digitei a expressão "violence on the movies" e obtive nada menos que 138 referências. A violência no cinema, não há dúvida, é um dos assuntos do momento.
Ora, a violência (ou pelo menos a expectativa de violência) é geradora de conflito, e todos nós sabemos que sem conflito não existem histórias para serem contadas - o que inclui o teatro, a literatura, os quadrinhos, toda a história da dramaturgia ocidental. Tem violência em Shakespeare: no final de HAMLET há uma pilha de cadáveres sobre o palco. Tem violência em Sófocles, em Homero. Então, o que mudou?
Alguns dizem que, hoje, a violência é mais gratuita, menos ligada à narrativa e mais à vontade que as pessoas têm de presenciar atos de violência física. E que isso, essa multiplicação de atos violentos na mídia, pode modificar a nossa atitude em relação à violência real. Com o que eu concordo em parte.
Em 1990 eu assisti na TV a uma luta de vale-tudo, aquele tipo de "espetáculo" em que lutadores de origens diversas trocam socos, pontapés ou golpes de qualquer tipo, sem regras ou restrições. Lembro que isso aconteceu poucos meses antes do nascimento do meu filho, o que provavelmente me deixou mais fragilizado, e lembro que eu fiquei terrivelmente abalado por ter visto aquilo. Cheguei a comentar que eu nunca tinha visto nada tão violento na minha vida.
Uma semana depois, três caras que estavam assaltando um armazém em Matupá, no Mato Grosso, foram linchados e queimados pela população. Um outro cara registrou em VHS o momento em que o corpo de um dos assaltantes pegava fogo, e dava pra perceber claramente que ele ainda estava vivo. A televisão reproduziu as imagens várias vezes - sempre, claro, acompanhado de um discurso pretensamente moral sobre o grau de violência das imagens. É difícil, hoje, dizer qual foi a violência maior: a dos caras que queimaram o sujeito vivo, ou a da televisão que se encarregou de banalizar o fato, ao divulgar as imagens. O que eu sei é que eu nunca mais fui o mesmo depois de ter visto isso.
O mundo das imagens, a tal da videosfera de que alguns teóricos falam, não é hoje o mesmo de dez anos atrás. O VALE-TUDO virou um programa semanal de audiência internacional, assistido por adolescentes e crianças. Os vídeo-games cada vez mais simulam violência de forma realista. Agora, por imposição de alguns grupos anti-violência basicamente americanos, há um sistema de classificação dos games, de menos violentos a mais violentos. Os fabricantes de games adoraram, claro: significa a perspectiva de mais lucro.
Recentemente, a própria mídia que vive da divulgação e da exploração da violência passou a considerar o fenômeno dos "copy-cat crimes", o que poderíamos traduzir por "crimes de imitação". Segundo a teoria, basta aparecer um crime "criativo" na televisão ou em algum filme da moda, que poucas semanas depois alguém comete crime igual em algum estado americano. Há vários exemplos: um jovem casal foi preso por ter matado cinco ou seis pessoas imitando os personagens de NATURAL BORN KILLERS; um adolescente deu um tiro num cobrador do metrô de Nova Iorque, porque este não tinha troco, exatamente como num telefilme chamado MONEY TRAIN; um episódio de Beavis e Butt-head mostrava os dois espertos garotos tocando fogo nos cabelos de um babaca, e logo uma criança fez o mesmo em uma pessoa real, provocando uma morte; e assim por diante.
Mas será que isso não é também um fenômeno de mídia? Provavelmente se poderia definir os "copy-cat crimes" pelo lado inverso: cada vez que acontece um crime "estranho", os departamentos de pesquisa dos grandes jornais e revistas não descansam enquanto não encontrarem algo semelhante que tinha sido mostrado na TV ou no cinema poucas semanas antes. Até agora, ninguém descobriu que tipo de vídeo-game jogavam os rapazes de Brasília que botaram fogo no índio Pataxó. E os fabricantes de vídeo-game devem estar lamentando.
Por outro lado, o próprio fenômeno talvez seja mais antigo: cerca de 15 anos atrás, dois jovens estrangularam um amigo no banco do carro, e disseram que haviam aprendido isso em O PODEROSO CHEFÃO. Pouco antes, um desequilibrado tentou matar o presidente dos Estados Unidos porque era apaixonado pela Jodie Foster e o personagem do Robert de Niro fazia o mesmo em TAXI DRIVER. Nos anos sessenta, havia casais de malucos pensando que eram Bonnie & Clyde. Eu não duvido que algum débil mental, depois de assistir ÉDIPO REI na Acrópole de Atenas, tenha chegado em casa bêbado e tentado comer a mãe, ou matar o pai, ou arrancar os olhos, ou tudo ao mesmo tempo.
Talvez hoje a população de débeis mentais, no sentido de pessoas mais fracas, mais suscetíveis a mensagens desse tipo, seja maior. Talvez os débeis mentais sejam mais estimulados, na medida em que existe uma produção audiovisual bastante grande pra eles, disponível vinte e quatro horas por dia.
Mas talvez eles não sejam assim tão débeis mentais, e apenas reflitam a maneira como as coisas acontecem hoje. Se a gente pensar que hoje se fala tanto em fim das utopias, em que não faz mais sentido pensar em termos de solidariedade, e em que o valor mais elevado que uma pessoa pode ter é a sua capacidade de competir com os outros em busca de trabalho, oportunidades, ascensão social, felicidade enfim - então a pergunta talvez não seja: por que há tanta violência no espaço público? mas sim: por que haveria de ser diferente?
Há alguns meses eu participei, na Universidade, de um debate mais ou menos nos mesmos termos desse de hoje, mas que era gerado por um filme espanhol chamado TESIS, em que se procurava discutir a produção dos chamados "snuff movies". Pra quem não sabe, como eu não sabia, filmes "snuff" são filmes de violência real, em que torturas e assassinatos são praticados na frente da câmara e depois vendidos para públicos muito especiais. Independentemente de seus problemas dramatúrgicos, TESIS tem o mérito de pensar o snuff como o supra-sumo da violência no cinema e na mídia, a próxima atração de uma indústria de imagens alimentada pela novidade e pela submissão ao gosto de um público que já não vê novidade em quase nada.
Uma das falhas na dramaturgia do filme é que a sua composição de personagens dá margem a uma simplificação da teoria da catarse, que acabou surgindo no decorrer do debate: nós, humanos, somos animais, precisamos liberar nossos instintos agressivos; logo, quem assiste filmes violentos se libera, fica em paz; quem não assiste, quem se recusa a assistir, precisa praticar. O que, evidentemente, é uma grande besteira. É como dizer que quem assiste filmes pornográficos não precisa trepar, ou que quem assiste programas de culinária na TV não sente fome.
Mas, ao tentar fugir desse enfoque óbvio e pouco produtivo, eu me aventurei a discutir o "snuff" como mais um formato audiovisual. E já que, aparentemente, nenhuma das pessoas presentes a esse debate hoje estava na Sala Redenção três meses atrás, não vejo mal nenhum em repetir parte da minha argumentação de então.
Dentre os muitos formatos que o produto audiovisual assume, entre o cinema que a gente conhece, a telenovela, o documentário, o comercial, o vídeo-clipe, o vídeo-game, dois me parecem particularmente representativos das relações entre a videosfera e o espaço urbano hoje: a pegadinha e a vídeo-cassetada.
Por um lado existe uma chance de qualquer um de nós se tornar um personagem da mídia: basta que a produção (o destino) nos escolha como alvo de uma brincadeira idiota qualquer, na qual somos submetidos rapidamente a uma forma branda de humilhação, captada por uma câmara oculta. É espantosa a quantidade de pessoas que, depois de sofrer esse tipo de constrangimento, não só não processa os responsáveis como ainda assina um documento permitindo que a emissora de TV utilize as imagens - de graça, em troca de um pouco menos que os 15 minutos de fama previstos pelo Andy Warhol: apenas 30 segundos de exposição ao ridículo.
Por outro lado, nós mesmos podemos tomar a iniciativa de construir esse tipo de imagens. Basta ter uma VHS na mão, nenhuma idéia na cabeça e um pouco de paciência para esperar que um filho, um parente, um vizinho ou simplesmente alguém que está passando por ali faça alguma coisa que seja suficientemente ridícula para aparecer na televisão.
Ambos oferecem a mesma coisa: a passagem do mundo comum para a videosfera, o mundo das imagens. Se a pegadinha é destino, acaso, sorte, a vídeo-cassetada é iniciativa, perseverança, capacidade de competição. De certa forma, esses dois formatos representam metaforicamente o embate final entre o que restou do Estado, no sentido do contrato social de Rousseau, e a iniciativa privada altamente competitiva. Adivinhem quem vai ganhar.
O filme snuff, eu defendi então, era apenas um formato mais radical da pegadinha e da vídeo-cassetada, porque direcionado para um público mais específico. O snuff seria uma pegadinha levada às suas últimas conseqüências, uma vídeo-cassetada feita por profissionais.
Se a minha analogia parece forçada, eu lembro a definição social de violência: constrangimento de A sobre B para que B faça ou deixe de fazer algo que a princípio não faria ou deixaria de fazer.
Dois grupos de pessoas vivem de violência: os bandidos e os policiais, iniciativa privada e estado. Os bandidos lucram com a violência, são os empresários da violência; os policiais são funcionários públicos aos quais se permite aplicar a violência em nome do bem comum (a paz, a tranqüilidade da sociedade ou a propriedade dos que mandam), e desde que respeitada a lei.
Aliás, durante muito tempo (especialmente nas ditaduras, mas não só nelas) os organismos de direitos humanos insitiram neste ponto: a única diferença entre o policial e o bandido é a submissão do primeiro à lei; se o policial não respeitar a lei, então não existe mais nada que o diferencie do bandido.
Hoje, quando as ditaduras foram substituídas por outras formas de governo, num mundo em que só o lucro é considerado como valor aceitável, e em que a privatização é a palavra de ordem, o que há de novo na violência urbana é justamente uma tendência de substituir os policiais pelos bandidos: é o que acontece de certa forma em algumas regiões do Rio de Janeiro e em alguns momentos específicos do país, como Carandiru ou Eldorado dos Carajás ou mais recentemente Diadema.
Eu não acredito que pessoas que assistam imagens violentas, reais ou fictícias, se tornem assassinos, ou mesmo que passem a tolerar assassinatos "na vida real". Mas não tenho nenhuma dúvida de que, com o tempo, elas deixam de se chocar com a violência. Se a novidade choca e a repetição banaliza, a televisão, que vive da novidade e da repetição, tende a banalizar o próprio choque.
Eu nunca mais vou me chocar tanto quanto me choquei quando vi o meu primeiro VALE-TUDO. Meu filho provavelmente nunca vai passar por experiência equivalente. Minha reação às imagens de Carandiru já foi menos radical que às de Matupá. Nem fiz questão de assistir às imagens de Diadema, mas tenho certeza que não me chocariam mais.
Vocês eu não sei, mas eu, sinceramente, sinto falta da
minha capacidade de me sentir chocado: longe de ser uma espécie
de "inocência perdida", creio que era uma forma de saudável
indignação.
Giba Assis Brasil
Usina do Gasômetro, 24 de outubro de 1997
Seminário "Tempo de violência"