O Casarão
por Gisele Jacques
Em idos tempos imemoriais, alguém chegou a um vilarejo perdido, repleto de casebres de madeira, e decidiu fundar ali uma cidade. Foi assim, no meio do nada, que o casarão foi erguido. Na rua principal surgiu o prédio imponente de dois andares e sacadas, número 203.
A cidade cresceu, ruas se formaram, famílias chegaram, e o casarão ali, motivo de orgulho, com suas portas - seis portas - em arco, a varanda ampla, as janelas altas. Era branco. O século chegava ao fim. Vieram doenças, previsões de fim do mundo, e até um cometa cruzou o céu. O novo século se iniciava.
Explodiu uma guerra insana, deixando homens furiosos e mulheres assustadas. Os canhões do outro lado do mundo urravam como feras ariscas, sedentas de sangue. E o casarão, número 203, continuava ali. As paredes ainda brancas.
Logo em seguida, a construção majestosa viu seus homens carregarem pelas ruas um simpático velho chamado Presidente. Era ele quem iria parar as guerras entre irmãos numa nação e trazer alento ao povo. Homens, do sul ao norte bradavam vivas ao Bom Velhinho. E o casarão ali. Mais de uma década se passa até que o velhinho se mata, deixando o caos instaurado na terra. E o casarão ali. Outros velhinhos vieram e a vida seguiu seu curso. Outra guerra, mais sangrenta que a primeira, tornando o povo de sotaque estranho intranqüilo. As famílias que vinham de longe, de além do oceano, moraram no casarão, que abriu suas portas piedoso e os deixou ficar. Já não era tão branco, a tinta descascava em rugas formadas pela idade. Mas continuava ali.
Muito tempo depois, homens vestidos de azul, ternos escuros, armas na cintura, povoaram o país. Cumpria ordens de outros fardados, que decidiam a morte de outros terceiros. O casarão foi refúgio de guerrilheiros - meninos apenas - com flores nos cabelos e o V aberto entre dedos. Mas, essa geração também passou. A paz imperou e o casarão, já sem cor, respirou descansado o perfume da coisa chamada democracia.
Todavia, pessoas espertas, com canudos de papel debaixo de braços poderosos, começaram a modificar a cidade. As igrejas cresceram, as ruas se alargaram, mais máquinas fumacentas cruzavam o asfalto. Os prédios ficaram maiores, mais coloridos e impessoais. Qualquer um poderia ser demolido, pois não traziam história. Não viram as guerras, a fome, os filhos dos filhos dos filhos nascerem. Não admiraram o novo século ou o cometa. Podiam tombar ao chão sem vida, pois não haviam vivido.
Em vez disso, demoliram o casarão.