Comentando o Fim de Ciclo

por Álvaro Magalhães

O texto do Fischer (clique AQUI para ler) abre uma série de polêmicas, na verdade. Antes de mais nada, para quem acha uma traição discutir temas tão delicados, replico o seguinte: se o pt continuasse a cumprir uma de suas promessas fundamentais, a do exercício da expressão da opinião, da crítica e do estabelecimento de compromissos como bases de construção de políticas, a fase idílica talvez não tivesse terminado, apesar das virtudes e, principalmente, de defeitos pessoais. O mundo não se resume a pleitos e partidos e um dos problemas centrais aqui é da instrumentalização político-partidária de “todo mundo” e da produção cultural.

A hipótese central do artigo está correta. Um sintoma do fim da fase idílica entre o pt e “todo mundo” da cultura se expressa pela atividade medíocre SMC em 1997 e 1998, excetuando-se as exceções, como a exposição do Manoel da Costa ou a iniciativa do Festival de Música. Em que área de atividade a secretaria avançou? Um indicador é a redução orçamentária. Junto com a SMIC, outra secretaria em que trabalhei, a SMC está regredindo no percentual da despesa municipal. E certas promessas, ou não vão ser cumpridas (como o carnaval no Sambódromo no ano que vem), ou são pífias, como o Conselho de Cultura ou a descentralização ideologizada, neo-cepecista. (Por neo-cepecismo rotulo a retomada de uma postura iluminada, em nome do Povo e em sua direção, com um projeto ao mesmo tempo cultural e político de cunho revolucionário, à lá CPC. Com direito a Augusto Boal ao vivo e Che Guevara revisitado.)

Sei como ninguém da batalha que é manter algumas atividades de pé (afinal, substituir o Carlos Branco - o melhor executivo da era idílica, na área de música da SMC em clima de terra arrasada - não foi mole), mas a ação cultural exige criatividade e dinamismo. Virtudes que não foram obtidas somente pelas qualidades dos assalariados do município, mas também pelo trabalho mais ou menos voluntário de “todo mundo”. Assim, quando “todo mundo” fica com um pé atrás, o negócio fica difícil... Acho equivocado personalizar o sucesso da prefeitura petista, como fez o Fischer, na importância de caras com a capacidade de trabalho do Fernando ou do Luciano. Sem demagogia, é bem mais do que isso. (*)

Bem mais interessante do que discutir créditos é compreender a mudança na tática da “concorrência”, ou seja, da relação entre secretaria estadual e secretaria municipal, além do “todo mundo” . Ela nos remete à uma postura menos “realista” e “politizada” de ação cultural por parte do concorrente estadual. [ Gostaria, com estes comentários, remeter o papo para as problemáticas de livros como os Daniel Pécaut (Os Intelectuais e a Política no Brasil) , de Renato Ortiz (A Moderna Tradição Brasileira) ou de Sérgio Miceli (Os Intelectuais e a Classe Dirigente no Brasil).] Vou tentar ser claro: tenho a impressão e o Nélson Boeira e o Fernando Schüller acertaram bem mais fundo do que o outro lado é capaz de perceber, mesmo que tenham um súbito ataque de boa vontade.

O Fischer interpretou corretamente o movimento do lado estadual. A ação da secretaria estadual transcendeu a compromissos de formação de imagem do governo (e do governador) junto com molezas fiscais para os parceiros “majors” (como o Zaffari, a Gerdau e a RBS) e também à simples cooptação por meio de contratos, aprovações de projetos ou cargos. (Miceli mostra como a cooptação é antiga e envolve intelectuais da melhor estirpe).

Ao não tentar reproduzir o namoro com “todo mundo” e não aglutiná-lo, produziu-se um distanciamento mais ou menos respeitoso e profissional entre o lado estadual e “todo mundo”. Se este sentimento prosperar, o estrago será fatal. (Como veremos, os músicos regionalistas não são “todo mundo”.) Afinal, “todo mundo” é antes de tudo produtor de cultura e não membro de partido político, apesar da postura “realista” da intelectualidade brasileira. Por postura realista, Pécaut sugere que os intelectuais estão de uma ou de outra maneira sempre produzindo análises politizadas e, potencialmente, prontos a agir politicamente. O livro do cara é muito interessante, pois mostra como diversos produtores da nossa nacionalidade, desde os nacionalistas da década de 30, aos isebianos, aos cepecistas, desde conservadores a revolucionários, autoritários ou democratas, todos estão (ou estavam) imersos em uma cultura política não-distanciada da construção da Nação, ou seja, não distanciada da política. Nisso, Renato Ortiz reforça, ao dizer que “em última instância, falar em cultura brasileira é discutir os destinos políticos de uma país”. Pelo menos até os anos 90, quando o namoro começa. A postura política independe da posição relativa no espectro dos apoios explícitos ou tácitos, das posições ideológicas parecerem isto ou aquilo. Mas a coisa muda se consideramos ambientes mais ou menos mercantis, mais ou menos profisionalizados.

Como não temos tele-dramaturgia, a nossa industria cultural é menos diversificada do que a brasileira em geral. Considerar a publicidade o cinema e o teatro como uma atividade mercantil interligada é forçar a barra, mesmo que alguns profissionais vivam pra isso. Há um mercado de livros e raros escritores profissionais. Se considerarmos o jornalismo ligado, o negócio fica mais forte. Agora, a atividade que realmente tem setores ligados ao mercado de bens culturais e atividades/manifestações que tem de ser subsidiadas é a música. E isto aparece na importância do apoio dos músicos aos candidatos. E é justamente na ligação entre música e política que o negócio ficou mais revelador e paradoxal. O número de “defecções” nos apoios petista é impressionante. Como seria de se esperar, quanto mais independente de recursos públicos, maior a facilidade para não escolher coisa alguma. Porém, do lado regionalista, em que estão os maiores vendedores e executores de discos, o apoio ao lado “vencedor” foi muito maior do que nunca. E alguém tem de me explicar como um esquema político apoiador do governo central - pica-pau por excelência - pode angariar tantos maragatos? Será o medo da reforma agrária? Será a influência do IGTF/MTG?

Além dos gaudérios, os sambistas não são “todo mundo”. E esse “todo mundo” foi e é em grande parte responsável pela legitimação dos órgãos estadual e municipal de cultura. Parece que só um lado percebe isto. O que estou tentando dizer é que enquanto a prefeitura está tentando se tornar mais revolucionária, mais politizada, neo-cepecista, o governo do estado, além de estabelecer alguns compromissos claros e proveitosos politicamente produz um resultado meio surdo e decisivo: um distanciamento não-intrumentalizante com “todo mundo”. Com possibilidades de uso da lei de incentivos e da incubadora cultural. E isto está mais de acordo com muitos produtores culturais que preferem não ser instrumento de nenhum lado e sim da valorização de “todo mundo”.

Nos tempos do Olívio e do Tarso era prometido um pluralismo, que hoje, apesar do discurso, não é mais objetivo sincero da SMC. Não é difícil prever que, com a radicalização interna dentro do pt, o neo-cepecismo - a opção pelo e em nome do Povo - ganhe força e afaste mais ainda “todo mundo” da prefeitura, apesar dos Roberto Carlos ou da música regionalista, ou seja, a opção pelo mercado ser prioritária. O caso não é que “todo mundo” ficou mais direitista, mas sim que há possibilidade de ficar mais distanciado e ser menos instrumentalizado. Isto ficou tristemente cristalizado nas imagens frias e meio sem graça do clipe da Frente Popular, contrastando com os “vencedores “farrapos””.

(*)

[Por exemplo, o Fumproarte foi formatado principalmente pelo Giba - que nunca vai admitir este crédito - e por uma ou duas funcionárias da SMC.] [Por exemplo, a Usina em 1993 teve seu auge mais graças a projetos de fora da SMC, como o Cidade Constituinte ou as feiras da SMIC.] [Não consigo imaginar como a minha equipe poderia gastar quase quinhentos mil reais em um ano e pouco, mobilizando mais de duzentos grupos ou solistas e mais de duzentas mil pessoas para assistir (quarenta mil só na reabertura do Araújo Vianna), sem a colaboração de muitos do “todo mundo” musical. Como ninguém canta os ovos que os outros põe, acho que o que eu e a Ana Lombardi “executamos” é, talvez, o melhor caso de relação custo/benefício em ação cultural na província. .]