FIM DE CICLO, s. m. j.
por Luís Augusto Fischer
(originalmente publicado no jornal ABC Domingo)
Certas coisas a gente sente no ar, sem conseguir explicar, racionalizar, dar forma e palavra. Nos últimos tempos, dá pra sentir no ambiente uma sensação de fim de um ciclo. Refiro-me ao ciclo do idílio entre a Cultura e o PT na administração de Porto Alegre. (Mal escrevo estas linhas, já me assalta a certeza de que vou mexer em vespeiro, meter o pé em ninho de cobra.)
Não sei se conseguiria argumentar direitinho, conforme seria desejável; então fico com a descrição do que percebo imprecisamente. Dá a impressão de que desde o fim da ditadura militar, que por sinal existiu, nunca é demais lembrar, portanto desde digamos a Campanha das Diretas, na altura de 84, ou antes, desde a Anistia, em 79, "toda" a cultura estava disponível para alguma alternativa de governo que não fosse a ARENA, de má memória. Em 82, houve a primeira eleição direta para o governo do estado depois do Golpe Militar. Simon contra Jair Soares e Collares, mais Olívio apresentando o PT ao mundo. "Todo mundo" queria que o Simon ganhasse: era a chance de "todos" chegarem ao poder, poder que havia sido negado sistematicamente desde 64, isto é, desde que Porto Alegre tinha virado uma grande cidade moderna (gente saindo pelo ladrão, cinturão de miséria, essas coisas).
Toda uma geração tinha ficado de fora. Ou até mais que uma. Tinha gente nascida ainda nos anos 20 e 30 que fora cassada, e tinha gente nascida nos 40 que nunca tinha chegado perto do poder. Na eleição de 82, "todo mundo" da área da cultura, tivesse nascido em 30 ou em 40 ou mesmo nos 50 ou, exagerando, nos 60, estava querendo Simon, porque ele significaria Carlos Appel na cultura, ou quem sabe Décio Freitas, gente deste porte e história.
Pois Simon perdeu. Subiu Jair. "Todo mundo" ficou de cara no chão. (Pode o leitor a esta altura estar invocado como este "todo mundo". Explico: todo mundo, entre aspas, é aquele grupo grande de gente que se movimenta em alguma direção, mas sem combinação prévia. Vai porque é pra ir, porque o vento sopra pra lá.) Precisamos esperar mais. Em 85, se não me engano, sobe Collares para a Prefeitura, e o saudoso Joaquim Felizardo para a Cultura do município, depois de algum esforço para tirar esta área do domínio da Educação. Já com o Joaquim parte do "todo mundo" levantou as orelhas, e de fato começou a trabalhar na máquina pública. Mas era apenas a prefeitura, máquina pequena ainda.
Em 86 Simon ganhou o governo estadual, com Carlos Appel na Cultura. Foi um destampamento de represa: "todo mundo" tinha coisas para dizer, para fazer, para propor. A geração dos anos 40 dominou a cena, com gentes dos 50 também, mas menos. E em 88 Olívio chegou à prefeitura da capital.
Bom. Aí foi um destravamento total das comportas. Com o Pilla Vares no comando, a secretaria de cultura tornou-se a referência dinâmica e forte da área, o que se acentuou com a eleição de Collares para o estado, em que não repetiu o que de bom havia feito para a cultura em Porto Alegre. De 88 em diante, e depois também, com a eleição de Tarso, em 92, instaurou-se o idílio, o namoro entre "todo mundo" e a administração pública. Mesmo que no governo Simon muita coisa tenha sido feita, e foi mesmo (para lembrar: Regina Zilberman fez uma grande gestão à frente do Instituto Estadual do Livro, Sérgio Napp pôs a Casa de Cultura Mario Quintana de pé), o grosso da produção da geração 50, com a participação da geração 40 de esquerda socialista, veio à tona mesmo foi na prefeitura de Porto Alegre.
Em 94 se elege Britto, que bisou Appel na Cultura do estado, em gestão que ficou pela metade, em mais de um sentido. Depois coincidiram duas passagens: em 96 Raul Pont é eleito para a prefeitura e Nelson Boeira assume o comando da Cultura estadual. E aí as coisas começaram a mudar, aquele idílio passou, algumas coisas apareceram, alguns fenômenos novos impuseram sua presença no cenário.
A alternativa histórica do MDB, frente que congregava meio mundo mais o outro meio, havia tentado, quando houve a redemocratização, manter-se como frente ainda, e muitos daquele "todo mundo" acreditaram nisso, com alguma razão. No entanto, duas outras propostas apareceram fora da ARENA e sucedâneos, PDS e PFL: o PDT, que nunca foi muito ligado na cultura, nem quando era PTB, pelo menos na cultura formalmente reconhecida como tal, e o PT, que pareceu ser, e foi, irmão de sangue da cultura, da ousadia cultural, da tese no fundo iluminista de que a cultura é um bem público que deve ser acessível a todos.
Quer dizer que o governo Simon representou um ponto alto, mas inicial, da vida cultural por aqui, depois da Ditadura, por vocação legítima de seu partido então. Mas chegou relativamente tarde: perdeu em 82, quando em quase todo o Brasil civilizado o partido venceu, e veio em 86, no bafo quente do Plano Cruzado. Ok, foi legal, mas durou pouco, não chegou a configurar um ciclo. Quero insistir no ponto: foi o PT que aglutinou de fato aquele "todo mundo", num ritmo que só fez crescer entre 88 e 96. Olívio e Tarso, portanto Pilla Vares e depois Margarete Moraes, souberam dar curso às iniciativas culturais mais interessantes do momento. Claro que Pilla contou com um pequeno motor adicional, Fernando Schüler, que dinamizou muito a cidade com seus mega-eventos, assim como o governo Tarso contou com Luciano Alabarse, que fez acontecer a integração com Buenos Aires e Montevideo e pôs de pé o magnífico festival que é o Porto Alegre EmCena.
Sim, agora o governo da capital continua com ótima atividade. Mas muitos diferenciais se impuseram: o secretário Boeira, num ritmo e numa lógica muito assemelhados aos do governo estadual, provocou uma pequena revolução. Para não ir longe, refez o Museu de Arte, questão encruada há décadas. Certo que também patrocinou ou pelo menos acompanhou iniciativas de discutível gosto e alcance, como os dois tenores que vieram por aqui, para agradar à opinião modelo Hebe Camargo. Mas é inegável que dinamizou o setor, ainda que não tenha conseguido, nem tentado, aglutinar tanto a ação cultural quanto a política cultural, transformando a secretaria estadual num pólo de referência obrigatória.
Por outro lado, o mercado de cultura cresceu muito. Coisas que até dez anos atrás, ou mesmo cinco, seriam impensáveis, hoje estão incorporadas à rotina. Empresários de variado tipo já não têm mais medo da cultura, e pelo contrário apóiam eventos. De dentro do setor cultural brotaram pequenos empresários, que viabilizam a produção. (O jornalismo cultural em geral, porém, em tevê, rádio e jornal, continua ruim. A TVE, que no governo Simon era um show, anda pelas tabelas, com poucas exceções.) E mesmo alguns setores da cultura popular, como o carnaval e o tradicionalismo, já criaram mercado próprio, cresceram e estão por aí, com mais ou menos dificuldades.
Este é um quadro aproximativo das coisas. Não dá pra esquecer iniciativas sensacionais da prefeitura, que continuam e devem continuar, como o FUMPROARTE, fundo que financia e dá corpo a várias e interessantes coisas, que de outra forma ficariam apenas na intenção. Como não dá pra ignorar, por mais que eu discorde politicamente de seu formato e gestão, da lei de incentivo à cultura do estado, que também está dando chances de mercado a muita coisa boa.
Seja como for, a sensação de fim de ciclo é forte. Tenho a impressão que aquela ligação imediata entre "todo mundo" e a administração petista acabou. Isso não significa que "todo mundo" esteja agora conectado com o governo do estado, porque não está, nunca esteve, a não ser passageiramente no período Appel do governo Simon. Isso talvez signifique apenas que estamos agora numa situação nova, quanto à cultura, numa sociedade mais complexa, que não pode ser alcançada por apenas uma forma de gestão, que não se contenta com apenas uma alternativa.
A cultura virou, entre nós, um mercado muito complexo, que vai do sofisticado ao popular, passando por vários estágios do brega e do banal. Ainda que em escala pequena, a indústria cultural entre nós conseguiu se colocar na paisagem (continua burra em vários casos, mas este é outro papo). De forma que aquele idílio, que testemunhei trabalhando no governo Tarso, acho que se foi. O patamar das coisas agora é outro. Não é mais estranho ver vários bons artistas em qualquer parte do espectro político (se bem que à direita sempre houve poucos, raros, como até hoje). Tirando as alucinações políticas, que não vou nomear em respeito ao pudor da legislação, tem artista erudito, brega e popular em qualquer canto, da esquerda até o centro, digamos assim. É uma questão de a gente se dar conta, meditar e depois ver o que fazer.
PS: aquele smj lá de cima quer dizer salvo melhor juízo. Melhor que o meu, quero dizer.