A IMPORTÂNCIA DO
CURRÍCULO NA CARREIRA ARTÍSTICA Carlos Gerbase |
(drama em 5 atos curtos e nada teatrais)
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Me formei em Arte Dramática, normal, quatro anos e meio, um pouco de vagabundagem nesse meio, comi a Maralúcia antes do sétimo semestre, vencendo a aposta com o Durval. E, formado, descobri que estava desempregado. Estranho, isso. Estuda-se e vagabundeia-se tanto tempo pra descobrir que os problemas estão apenas começando. Tinham me garantido que ator homem era artigo de primeira necessidade, mas acho que os colegas veados já tão enganando bem pra caralho, ou então o público já aceita as bichices numa boa, virou tradição, que nem lá no teatro da China, que homem faz papel de mulher e todo mundo acha ótimo. O Durval sugeriu que eu fizesse um currículo e mandasse para as principais produtoras de cinema, televisão e vídeo da cidade. Em anexo, uma fita VHS com trechos das peças que encenamos na faculdade. O normal: Becket, Qorpo-Santo, Woody Allen, enfim, uma barafunda total, de modo que ninguém sabe se sou ou não um bom ator. Nem eu sei. Como os outros vão saber? Por isso preciso de uma chance. Por isso fiz o currículo. Por isso o enviei e agora tento descobrir o que eles acharam. Alguém quer me contratar?
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Duas respostas curtas e sinceras: "Não". Não gostei das respostas, mas gostei da sinceridade. Seis respostas enrolativas, tipo "não tivemos tempo ainda de analisar...". Normal. Tudo bem. "Sem stress", como diria um amigo meu. Mas uma resposta me deu esperanças, pronunciada por uma secretária peituda e bunduda: "Precisamos de duas fotos dezoito por vinte e quatro, uma só do rosto, outra de corpo inteiro". Gastei vinte e nove reais e cinqüenta e nove centavos para fazer as fotos, com um ex-colega fotógrafo, que trabalha no laboratório do Correio do Povo. Ele fez as cópias na camufla, de madrugada. Não ficaram muito boas, mas não posso reclamar. Levei as fotos pra secretária bunduda e peituda, e ela disse que era melhor se fossem coloridas. Mas guardou as fotos numa gaveta, junto com o currículo, e disse que entraria em contato. Então era só isso? Entraria em contato? Quando? Que merda, pensei, gastei meu dinheiro à toa. E saí da tal produtora pensando na proposta do meu tio Irídio, que queria montar um desses carros que vendem cachorro-quente no porta-malas. Diz que tá dando a maior grana.
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Mas, dois meses depois, eu continuava sem fazer nada. Desempregado total. Minha mãe ameaçando. Meu pai lembrando que, quando eu decidi fazer Arte Dramática, ele avisou que até agüentaria filho homossexual, mas não filho vagabundo. A maior barra. O tio já tinha comprado um Fiat 147 pra transformar em banca de cachorro-quente. E eu me imaginava de avental branco, sentado numa dessas cadeiras de praia, esperando os fregueses, ouvindo futebol no radinho. Então uma mulher ligou. Disse que estava fazendo o "casting" para o elenco de apoio de um especial da Globo. Haveria um teste de vídeo, num estúdio. Deu a data, o horário e o endereço. Eu pensei em pedir o roteiro, mas logo desisti. Elenco de apoio geralmente tem só uma fala, quase sempre "Cuidado" ou "Socorro".
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Fui pro teste cheio de esperanças. Globo é Globo. Cheguei no tal estúdio e me deram logo um número: noventa e oito. E então percebi que eu tinha pelo menos noventa e sete concorrentes. Normal. O verdadeiro talento sempre se destaca. Mas quem disse que eu tinha talento? Fiquei extremamente deprimido e sentei num banco de madeira, ao lado da garota noventa e seis, muito bem vestida, com um colar de pérolas falsas. Puxei conversa. Ela disse que estavam selecionando um homem e uma mulher. Minhas chances aumentaram cinqüenta por cento. Quem sabe mais, porque havia um número bem superior de mulheres do que homens nas cercanias. E tem mais: o que tinha de veado... Quem sabe homem mesmo era só eu e dois anões fanhos? Mas não era. Quando fui chamado, depois de três horas e meia esperando, ligaram a câmara e pediram que eu falasse meu nome. Eu falei. Pediram que virasse de lado. Eu virei. Pediram que eu dissesse a frase: "Cuidado, você está numa situação muito delicada". Eu disse. Quatro anos de Arte Dramática e essa era a minha grande chance! Foi horrível. Terminei de falar e já sabia que tinha sido um fracasso. Desligaram a câmara. Agradeceram. Gritaram "o próximo". Eu saí do estúdio me sentindo péssimo e encontrei a garota noventa e seis. Ela chorava copiosamente. Eu fui consolar. Disse que esses testes não eram sérios, que atores de verdade jamais podem demonstrar seu talento dizendo "Cuidado, você está numa situação muito delicada". Ela limpou os olhos num lenço de papel e perguntou se eu era um ator de verdade. Eu disse que era, mas que no dia seguinte começava a vender cachorro-quente no porta-malas de um Fiat 147. Ela sorriu. Depois riu. Eu ri também. E assim eu conheci Desdêmona, minha atual esposa. E a Globo que se foda.
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Primeiro montamos "Seis personagens à procura de um ator". Não do modo tradicional, é claro. Nós dois interpretávamos os seis personagens, três para cada um. A crítica não viu sentido algum nesse acúmulo. O público não entendia direito o enredo. Mas nós ríamos adoidados. Depois fizemos um pouco de Becket e Qorpo-Santo, ou seja, aproveitei os textos que eu já conhecia da faculdade. Estamos agora negociando os direitos de uma peça de Woody Allen. Custa caro e se paga em dólar, adiantado. Mas isso não é problema para Desdêmona. Ela é podre de rica. Lembram daquele colar de pérolas falsas? Não eram falsas. Eram de verdade. Desdêmona adora cinema e sonha em fazer um longa-metragem. Foi se informar quanto custa. Mais de um milhão. Ela ficou assustada. É rica, mas não é louca. Então resolvemos fazer um curta. Escrevemos uma história legal e chamamos um cara talentoso pra transformar em roteiro. Dois personagens principais, eu e ela, é claro. "Mas quem vai ser o elenco de apoio?", perguntou Desdêmona. "É simples", respondi. "Vamos pedir que os interessados deixem seus currículos. Nós analisamos e depois chamamos os melhores para um teste de vídeo." Ela topou. Agora, enquanto Desdêmona dorme em nossa imensa cama forrada com lençóis de cetim, analiso os currículos entregues para nossa secretária peituda e bunduda. Talvez peça duas fotos dezoito por vinte e quatro para essa ruivinha que diz ter participado de um pornô experimental. O currículo dela é muito bom. E deixo aqui meu conselho para as futuras gerações de atores: caprichem no currículo, porque ele é a porta de entrada para o sucesso artístico e para a realização profissional.