Beijo estalado Daniel Galera |
Meus olhos ardiam enquanto eu tentava enfiar a chave no buraco da fechadura com a cabeça encostada na porta e vamos devagar eu pensava não quero acordá-la. Havia um zumbido quase imperceptível no corredor vazio e encardido do prédio e eu enfim consigo encaixar a porra da chave, giro ela abro a porta e adentro com passos de bailarina no apartamento. A luz do quarto estava acesa naquela madrugada fria e tão mas tão triste, pois a cidade parecia mais do que nunca ser nada mais do que uma vastidão povoada de fantasmas azulados e luzes neon coloridas e um vento molhado e cortante. Que bom meu amor eu queria tanto que você estivesse mesmo em casa eu te amo tanto você sabe? Talvez tenha esquecido, mas eu te repeteria isso quantas vezes fosse necessário, entendeu?, até que você me dissesse sim eu ainda te amo muito também e nunca vou me esquecer disso. Penso então sim querida, fiquei feliz e mesmo aliviado de saber que você estava em casa mas por Deus eu preferia que você estivesse dormindo...
Nem sei há quanto tempo faz isso mas já faz algum tempo que ficou difícil te encarar ao chegar em casa tarde do trabalho e ficou difícil também te fazer entender tudo que eu sinto, você percebeu isso ou é loucura da minha cabeça? Sim vai ver estou louco mas não! não posso estar, de fato tem sido tão difícil até mesmo te olhar na cara. Por que será, eu pensava enquanto tirava minha camisa e massageava o pescoço tenso pensando em como te encontraria no quarto, talvez dormindo de luz acesa e isto seria um alívio, ou quem sabe acordada vestindo a camisola de seda abraçada ao travesseiro e chorando por dentro como eu percebi há alguns dias atrás. As luzes dos prédios vizinhos faziam desenhos na parede da sala e os carros que ora passavam em alguma rua logo abaixo riscavam também luzes que percorriam o teto, além do que o som de alguma televisão ligada alcançava meus ouvidos já distorcido e que merda eu pensava não se tem silêncio nunca mas nunca mesmo. Vamos ver vamos ver eu entraria no quarto e você estaria sim com a sua camisola de seda tão linda e eu diria Oi meu amor que bom que você esta em casa hoje como foi o dia no hospital, eu finjiria que me interessava por este detalhe, e você me responderia Oi querido foi a loucura de sempre obrigado por perguntar. Loucura..., eu balbuciaria baixinho, tiraria as calças me aproximaria de você e te daria um beijinho estalado na boca, você sorriria aquele sorriso de antigamente tão faceiro e eu completaria dizendo Te amo muito viu?
Também te amo...
Eu imaginava tudo isso quendo entrei no quarto e você estava jogada na cama ainda vestindo o seu avental branco por cima da roupa que usara o dia inteiro e uma garrafa de vinho quase esgotada na cabeceira com um copo sujo e outro limpo e eu achei a cena tão triste que me deu um nó na garganta... meu amor aonde fomos chegar? o que vamos fazer? minha linda eu amargurava em pensamento enquanto me livrava de todas aquelas porras que eu levava e usava no escritório durante o dia todo, todinho! o relógio, a pasta de couro, estas roupas que amassam e todas essas porcarias. Fiquei pelado e pensava agora se te acordava ou não, você ali tão bonita naquela posição, vestida com a roupa de todo dia era de certa forma até engraçado mas seria impossível rir assim como por tanto tempo tem sido impossível chorar... Todas as minhas dúvidas se resumiam em te acordar ou não Será que devo? eu pensava, você precisava tanto dormir eu sabia disso mas aparentemente havia me esperado ali por tanto tempo, com a garrafa de vinho para que eu chegasse em casa e te encontrasse disponível, só pra mim, e eu diria como te amava e teríamos uma conversa tranqüila e carinhosa, talvez a primeira em meses. O que aconteceu conosco, meu bem? Eu não sei, juro que não sei o que está errado, mas tem algo errado com essa vida onde fico cinqüenta e duas horas seguidas sem te encontrar em casa, vestindo uma camisa social num escritório fazendo contas e dando mijadas nos empregados relapsos para então voltar pra casa e de duas uma: ou te encontrar dormindo teu sono de anjos ou não te encontrar. Tem tardes que você está em casa, tem noites e madrugadas que voce desaparece do meu mundo e é tudo culpa daquela merda de hospital que empreguinho de merda ser médica grande coisa... salva vidas e tal, mas você não pode esquecer da sua própria vida meu amor, a sua vida. A nossa vida, caralho.
Decido tirar a sua roupa e cobri-la e deixá-la dormindo, e penso isto dói pra mim pois eu precisava tanto falar com você mas você merece dormir, meu bem, merece todo o sono do mundo... mas assim que te toco você acorda, esfrega rapidamente os olhos e meu coração dispara adrenalina taquicardia yes como se fosse a primeira vez que eu fosse ouvir a tua voz e não te conhecesse há quase cinco anos meu anjo de asas brancas e contorno preto nos olhos, e você se torce toda olha pra mim e diz:
Oi querido.
Oi meu amor eu respondo.
Fiquei te esperando, peguei no sono você diz sorrindo. Não tire esse sorriso nunca mais da cara para que eu possa ficar olhando eu penso mas a única coisa que digo é Tive uma bosta de reunião horrível hoje. O sorriso perde-se no ar e você responde Sinto muito. Eu sei que sente droga mas foda-se por que diabos eu fui tocar nesse assunto eu sou um idiota completo me desculpe por essas e por todas as cagadas da minha vida, por favor eu te amo, mas na verdade eu não digo nada disso, digo apenas É fogo...mas está tudo bem, não se preocupe. Tudo bem nada (penso).
De repente o silêncio, ora vejam só, silêncio absoluto quando finalmente reencontro minha mulher em minha própria casa e eu tinha tanto pra dizer e sinto que ela precisa me dizer tanta coisa precisamos conversar um pouco por Deus e de repente me vem esse silêncio filho da puta! Droga o que que eu faço penso e faço a única coisa que desejo fazer agora, ponho a mão nas costas dela, olho por alguns instantes nos seus olhos que estão ainda sonolentos e puxo um abraço ao qual ela se entrega, Ufa! Que alívio ainda não viramos estátuas de pedra e este abraço é possível, que gostoso este enlace aquecido e forte. Finalmente boto pra fora as minhas palavras Eu te amo, viu? De verdade... e ela chora mansinho.
Mas não diz eu te amo.
Diz Puta que pariu às vezes é tão difícil pra mim querido eu não sei o que está acontecendo conosco chuif chuif eu precisava tanto de um abraço, sabia? ela diz. Eu também, eu também... mas não consigo me comover tanto quanto eu tinha vontade, pois o que me bate neste momento é uma raiva horrível e despropositada do mundo. Merda merda merda. E não como nem bebo nada nem escovo os dentes nem dou uma última mijada nem dá tempo pra conversa nenhuma, apenas trepamos e pegamos no sono, como se isso fosse algum remédio.
Acordo então no meio da noite com uma sensação de que algo está errado, muitíssimo errado senhoras e senhores. Eu quero porque quero a escuridão mas ela não vem nunca, pois neste mundo de merda não há mais escuridão não, senhores! Há luzes aonde quer que se vá, nem o sol se vê mais por trás desse teto de holofotes e Bah que viagem eu acabei de pensar! Putz entendi acho que estive sonhando mas não há lembrança de sonho algum, apenas esse furacão violento de pensamentos, números e senhores engravatados vomitando ordens e reclamações que não agüento mais ouvir e barulhos de carros, buzinas, e tudo o mais! Não há mais silêncio no mundo droga aonde quer que se esteja há um carro peidando e roncando seu maldito cano de descarga e PORRA! digo em voz alta, confuso desnorteado e ela dá uma volta na cama soltando um suspiro assim hmmm... tão bonito... Que feio, quase acordei ela! Sou mesmo um abobado. E não quero mais dormir, não consigo dormir na verdade... tem problemas demais pra resolver na minha vida pra que eu possa me dar ao luxo de dormir penso e resolvo me levantar ainda no meio da madrugada com fragmentos de sonhos interrompidos me circundando sabendo que sair da cama assim é bobagem mas ainda assim fazendo, talvez numa tentativa meio desesperada e boba de rebelar-me contra o que quer que fosse. Merda merda o que é que eu estou fazendo? e meto minha cueca samba-canção do Pateta, depois minha única calça de brim e depois a camiseta e os tênis, fodam-se as meias. Que fome filhadaputa, enfio um pedaço de bolo de milho goela abaixo e tomo um copão de água, era tudo que estava a mão. Destranco a porta saindo do meu apartamento dois quartos com excelente vista para o Vale das Paredes de Concreto Encardido, tranco a porta percorro o corredor no escuro mesmo desço os quatro andares pela escada atravesso o saguão abro a porta da entrada passo por ela fecho e pronto.
Caralho, o que é que eu tô fazendo aqui na rua?
Resolvo que enlouqueci, não tem problema o que há de errado nisso? Todo mundo é um pouco louco afinal de contas, vou mais é aproveitar penso e me ponho a caminhar com as mãos nos bolsos na direção do centro da cidade, porra tá frio devia ter pego um casaco agora é tarde. Oh mas que belo céu desprovido de estrelas! É isso aí estrelas, escondam-se, acham que me importo? Fodam-se vocês. Uma chuvinha fina caía incomodando a vista e molhando tudo, o asfalto deserto reluzia molhado e eu pisava nas poças d'água às vezes de propósito às vezes sem perceber, nas calçadas apenas um que outro vagabundo pois ninguém além de vagabundos ou loucos de almas torturadas estariam vagando pela cidade numa madrugada de quarta-feira lá pelas quatro da manhã suponho. Mesmo vazia a cidade parecia me oprimir, apaguem todas as luzes pensei, seria tão bom! Pelo menos os carros haviam dado uma trégua, não havia barulho de motores graças a Deus e isso já era alguma coisa. Puxa, aqui estou eu vagando na rua que legal, legal nada seu imbecil idiota o que você pensa que está fazendo você é mesmo um burro, essas coisas ninguém dizia pra mim, eu as estava dizendo pra mim mesmo em voz alta, como um louco. Também! Como não enlouquecer nesta vida, meu Deus? Deus nada, não quis falar contigo, vou reformular a frase. Como não enlouquecer nessa vida, meu Amor? Como não enlouquecer depois de passar dias sem conseguir trocar uma palavra contigo por causa dos empregos e dos negócios e dessas coisas que vão tomando a vida da gente aos pouquinhos, me explica, como não enlouquecer no meio dessas luzes frenéticas e motores roncando e buzinas e pivetes empurrando bilhetinhos de corte de cabelo a dois reais, me explica... me explica por que olhar nos teus olhos é tão doloroso, eu já não sei se tu me ama... Admito então, sou louco e vou vagar eternamente durante as madrugadas pelas ruas reluzentes de chuva lá no fundo dos penhascos de cimento cinza, vou sim me impeça quem puder! Dirão o que quiserem meus colegas de trabalho à puta que pariu com eles! Nada pessoal, mas eu não agüento mais... será que você não quer enlouquecer também meu amor, andaremos juntos pela cidade cantando alto de mãos dadas, eu estarei pelado e você vestindo apenas sua camisola de seda tão linda e nossas palavras serão ouvidas por todos do alto de suas torres de concreto, vai ser tudo tão louco e tão mais fácil! Aí cara tem um real aí?
Quê? eu pergunto
Um real.
Me deixa em paz.
Calaboca fiadaputa e me dá toda a grana que tu tem aí se tu não quer te dar mal e Caralho! digo eu estou sendo roubado. Merda o que é que eu tou fazendo na rua que horas devem ser e o que é que eu digo agora ai ai ai. Então eu saio correndo pois é a única coisa que consigo pensar em fazer e isso foi muito estúpido ah se foi! O miserável me pega em cinco segundos e não está nem um pouco feliz, me dá umas porradas que até que nem dói tanto e mexe nos meus bolsos mas não encontra nada é claro trouxa eu digo achou que eu ia ser abobado de sair com grana no bolso a essa hora e Putz! Eu devia ter pensado isso mas me enganei e falei alto, agora me fudi. Comecei a levar porrada de novo e agora era sério, foi inútil tentar me defender levei soco na cara no nariz merda fez crack!, doeu e caí no chão sem conseguir ver nada e levei mais um monte de chute no rosto nas costela e teve um que pegou no estômago e doeu tudo por dentro, gritei.
Minha mulher não estava mais em casa quando voltei, eram quase oito da manhã, procurei por algum recado ou bilhete ou de repente alguma frase carinhosa escrita a batom vermelho no espelho mas não, nada, mas tudo bem. Puta merda onde estive com a cabeça e então aconteceu chorei, chorei pra caralho um choro que estava ali comigo há meses, porra que alívio, era ruim e ao mesmo tempo bom botar tudo pra fora. Depois fiquei olhando pra minha cara no espelho do banheiro, o lábio rachado, nariz inchado e sangue por tudo, e agora lágrimas salgadas, caramba que troço deprimente, que farrapo! Por baixo desta máscara de dor eu costumava ser um cara bonito até... Olhei com mais cuidado pra minha cara, eu mesmo ali no espelho, mas por mais que eu olhasse não conseguia pensar ou observar ou concluir muita coisa. Acabei detendo minha atenção no meu sangue que agora desenhava manchas pela minha cara e achei tão legal aquele sangue, um troço até bonito, sim o sangue tem um lado estético, eu gosto. Mas chega de bobagem por hoje, não é? Escrevi um bilhete escrito EU TE AMO assinado "Meu Nome" e deixei na mesa da sala, depois me deitei do jeito que estava e implorei pra dormir até que minha mulher voltasse uma hora dessas e me visse assim deitado machucado e resolvesse me tirar a roupa de mansinho pra que eu continuasse dormindo, mas eu acordaria e ela me daria um beijo estalado e depois muita coisa iria melhorar, eu sei que iria.
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