Crônicas da Mãe (III) Alice |
Ela tinha três anos e meio e ele quase cinco. Nós três estávamos na praia, à noite, sentados na frente da casa alugada. Já tínhamos tomado sorvete, passeado no "centro" e jogado dinheiro fora tentando pegar um bichinho de pelúcia. Naquele verão, a praia foi invadida por quebra-molas, postos da Telesc e máquinas de bichinhos.
- Mãe, de onde eu surgi? - ela perguntou. Assim mesmo, "surgi". Eu pensava por onde começar quando ele explicou:
- Tu tava em uma máquina de bichinhos. A mãe foi jogar e te tirou de lá.
- É verdade, mãe? Eu morava na máquina de bichinhos? Como é que eu cabia lá? O que tu fez quando eu saí? Aquela garra não me machucou?
Não resisti. Era uma história muito boa, melhor que a sementinha que Deus mandou pro papai, etc...
- Bom, quando eu te tirei de lá tu não eras assim, uma menininha pronta, era mais como um ovo, toda enroladinha, uma bolinha.
- É, - ele completou - e a mãe te viu pelo vidro e pegou com todo o cuidado pra não te espetar com o gancho.
- O mano tava lá, mãe? Ele viu tu me pegar?
- Claro que eu tava, - ele nem me deixou responder - eu nasci primeiro.
A próxima pergunta era óbvia:
- E o mano, tu também ganhou ele na máquina?
- Não, - eu respondi mais rápido desta vez - o mano veio pra mim no videogame. Eu passei de fase e ganhei o mano como bônus. Ele piscou na tela da TV e saltou para o meu colo.
- É, foi assim mesmo. - ele adorou a idéia.
Ficamos um tempo em silêncio, eu já pensando num jeito de desmentir tudo sem que ela se sentise enganada, quando as perguntas começaram. Ele respondia, e ela perguntava outra coisa.
- Que tamanho eu era?
- Do tamanho de um mamão, daqueles grandes. E vinha num ovo de pelúcia bem fofo.
- Por que a mãe me levou pra casa? Podia ter me deixado lá...
- A gente gostou de ti.
- Como que eu saí do ovo?
- A mãe te desembrulhou, e aí tu começou a crescer.
- O pai ainda morava com a gente?
- Morava, ele também gostou de ti.
- Por que a mãe não pegou mais bichinhos, ficou só com nós dois?
- Por que ela e o pai se separaram, e ela só tem duas mãos, não ia ter mão pra dar pro outro filho na hora de atravessar a rua.
- Pessoas que tem mais que dois filhos não se separam?
- Não pode, porque aí um filho fica sem mão.
- Eu queria que a gente fosse três.
- Eu também.
O silêncio voltou, e eu não achei nada engraçado pra dizer. Ia ter bastante tempo pra contar pra ela toda a verdade sobre como as crianças "surgem".
-Gente, vamos pra dentro que amanhã vai dar praia.
Camas e lençóis estranhos, remédio para mosquitos, uma historinha, ele dormiu logo. Ela passou o braço em volta de mim. Macio, gordinho, com dois furinhos no cotovelo. Deu um sorriso e suspirou, antes de cair no sono:
- Mãe, tu também é o meu bichinho de pelúcia...
E eu fiquei feliz e me senti como se fosse mesmo.