Férias de Inverno (Encontro sempre o Zé Weiss...) Foguinho |
Zé Weiss para mim é um mito, é o Woody Allen porto-alegrense, e ninguém percebeu isso, nem ele próprio, que desconhece o seu talento. Depois que Nélson Nadotti abandonou Canoas e o convívio com os simples mortais, só restou Zé Weiss.
Essa bronca do Nadotti com a Jovem Guarda é, evidente, um expurgo de sua própria (dele) infância e início de adolescência. É um mea culpa tardio e inútil. Está na cara que ele adorou e continua adorando Márcio Greyk. Vou tentar ajudá-lo a amar a si próprio, o que implica necessariamente amar Márcio Greyk.
Raul Seixas foi quem percebeu com mais clareza a eficácia da Jovem Guarda de Roberto Carlos. Foi um produtor, um tradutor, um cantor de Jovem Guarda, na moita. Ou não. Tem uma canção exemplar de Raul: Playboy, gravada por Renato & seus Blue Caps, onde o moderno (o tal playboy, de jaqueta de couro e moto envenenada) chega no subúrbio de qualquer grande cidade para roubar a namorada do proletário, careta, romântico, fodido. A canção é sempre do ponto de vista do suburbano. Por isso, é tão brasileira, como é a Jovem Guarda toda, uma resposta acanhada e estúpida aos temporais alheios. Nossa vergonha e nossa redenção. O moderno e o arcaico. O velho problema que preocupou os paleolíticos também.
E aí Raul Seixas fica sendo citado como se fosse muito louco, coisa e tal, mas havia outros mais radicais, que eram revolucionários no cerne da vida, que brincavam de montar e desmontar a linguagem, coisa que o próprio Raul reconheceu.
Walter Franco foi citado pelo próprio Raul Seixas como um E.T. "Eu sou revolucionário no conteúdo, mas Walter é experimental também na forma. As pessoas o vêem como um extra-terrestre", disse Raul à Veja, na metade dos anos 70, e eu li deitado numa rede, na casa de minha mãe, na rua Nunes Machado, no bairro Azenha, embaixo de um abacateiro. A vida é boa quando a gente deixa o tempo passar.
Paraíso. É o nome bonito de um bairro de São Paulo. 4 da tarde de quarta-feira. Bato na porta e aparece Walter Franco. Mais gordo do que na fotografia da capa de seu último disco (LP), e olha que isso já faz mais de dez anos. Fica ali, com aquele olho parado, vidrado, quase hostil, embora o rosto tenha o ar bestial e inocente dos monges budistas. É impressionante o contraste entre a ferocidade do olhar e a doçura do sorriso.
A conversa atravessa a tarde -- na janela a silhueta dos edifícios no outro lado do Parque Ibirapuera, monumentos de ferro e aço --, mas saíram só duas aspas na matéria publicada na revista em que trabalho. Não faz mal. A entrevista virou recital particular, só para mim, e era ele quem estava mais entusiasmado, ou mesmo impressionado com o fato de que eu sabia todas as letras (poemas, ele me corrige) e cantava junto suas canções malditas e intocáveis no rádio. Antes de se despedir, me mostrou uma fita cassete com o embrião do que seria (será?) uma peça composta para ser cantada por mil vozes a respeito da natureza-mãe.
Eu sempre encontro o Zé Weiss, faço questão de vê-lo, mesmo que ele passe do outro lado da rua, na calçada, por exemplo, da Venâncio Aires, mãos nos bolsos, rosto crispado pelo frio, lajes molhadas, a vida solitária... E o coral de mil vozes (que eu já esqueci) ressoa em minha cabeça.
Isso é algo bem concreto.
Ir para o centro de guarda-chuva. Escorregar, de leve, nos paralelepípedos da rua da Praia. Uma vez fui para o centro com um chinelo de dedos novo, liso, de surfista, e escorreguei na pista da Salgado Filho e caí de bunda no chão. Não faz tanto tempo assim. Entrar na galeria Malcom. Point juvenil há priscas eras. Os ambulantes abarrotados de camisas vermelhas piratas.
E a chuva miúda, daquelas que penetra nos ossos, na roupa. Só espero que, à noite, a chuva tenha parado e a Venâncio Aires esteja seca e vazia, caminho reto e infinito, que no entanto acaba, e justamente na José do Patrocínio, ir e vir inútil, flerte divertido com o vento, que agita pequenos redemoinhos na estação rodoviária à tarde.
Em Barcelona, se vai a um bar em que, ficamos sabendo, está escrito na parede, artistas famosos frequentavam. Tem, no entanto, o charme do bar que frequentamos anonimamente a vida inteira.
Encontro Zé Weiss. Do outro lado da calçada da Venâncio, caminhando de mão no bolso, conversando com alguém, falando animadamente, e o diálogo que não escuto contrasta com a timidez da mão no bolso, recato, leveza, vagar. Encontro ele sempre no inverno de Porto Alegre, só que passo do outro lado da rua, na outra calçada da Venâncio, eu também com a mão no bolso, cabeça baixa, noite de São João, noite de São João, o prefeito vai hoje na travessa, vai chover, não vai ter fogueira, ou vai apagar logo, não importa, as crianças vão pular, escorregar nas pedras úmidas, como artistas anônimos, coadjuvantes da minha passagem quieta e invisível pela cidade.
Lá vai Zé Weiss. Dêem a ele um bom emprego e um pouco de prosa. Um pouco de atenção. Todos nós merecemos um pouco de atenção. Principalmente quando chove muito e faz frio e, como dizia Artaud, doem os ossos.