(Off the record)

 

Simone Dias Marques

- Sempre achei estas tuas sandálias algo muito desconfortável. Tira isso, guria! – Ela obedeceu e afrouxou uma das tiras de couro que apertavam o peito do pé agora com uma faixa de carne avermelhada.

Estábulo nevermore chovia e se ouvia Beatles e se falava da viajem a Buenos Aires e de cortes de cabelo a barriga dele protuberante como se abrigasse um travesseiro de penas de ganso coisa boa cheia de pelinhos aparecia em nesgas ora quando ele punha outro disco ora quando coçava sua pança e como coçava aquela pança o pancho um cheiro acre morno rodeava a luz sobre ambas cabeças e os olhinhos miúdocastanhos queriam mais que conversa tinha medo do que poderia acontecer e ao mesmo tempo duvidava do que seria ele capaz seria? Foi. Pegou-lhe os pés que foram forçados a sair de dentro das sandálias que os espartilhavam e tomou-lhe o par de pés nas pequenas mãos delicadas de redação e afagava como se ali naqueles membrozinhos estivesse todo o corpo da garota sua ex-garotinha e amaciava e olhava para ela que cada vez tinha mais vontade de ficar ali assim para sempre nevermore chovia intermitente e ele tirou os tênis ficando só de carpins cinzas com o dedão direito puído uma coisa sensação de que estavam úmidos e ela lembrou-se das mãos frias e úmidas de um certo domingo mas ele não ele pôs o pé esquerdo logo antes das nádegas da garota e o outro do outro lado perto do quadril sobre na poltrona e assim ficou a olhar com as pernas escancaradas e ela sabia que ele sempre usava samba-canção por isso tudo ali molinho e aglutinado a um canto feito um bichinho a dormir dormir coisanenhuma uma maluquice ela até cogitou sem muita convicção sair ir embora mas algo a retinha o porvir quem sabe. Ele não teria coragem teria? Teve. Largou-lhe os pés e em coisa de segundo jogou o corpo sobre o dela sobre a poltrona empanturrando-lhe de beijos e ela sentiu aquele cheiro amargo de sua boca e do pescoço mas não sentiu nostalgia nem desejo e tentava abraçar e afastar o corpo dele selvagem canibal querendo engolir a garota a barba por fazer há mais de um ano antes uma pluma uma penugem agora uma lixa fazendo arder a pele em volta da boca e ele não parava o cavalo doido querendo coisinhas ela então conseguiu parar quando ele já ameaçava arrancar-lhe a blusa. Ofegantes. Amêndoas miúdocastanhas duas na parte superior do rosto vintepoucos a mirar aquela criatura que um dia tanto quis ambos queriam e ambos se davam sem constrangimento agora isso essa merda o que estamos fazendo não posso ela disse misto de patéticorridícula não posso continuar e ele completou eu também não posso mas ele não podia por motivo diferente do dela e achava que era pela mesma coisa esses equívocos. Levantaram-se ele de cima dela e ela logo a seguir e sentou na outra poltrona pôs as sandálias escondendo o meiossorriso (por que será que riu?) com o rosto slow e ele se desculpou deus! Pedir desculpas pelo que? Perguntou ela por que desculpas? Ele em pé diante dela meioperto não muito convicto de deixar a presa escapar assim e ela olhando para ele em contraplongée ele parece maior assim e agora se via barriga quase nada e ele se abaixou aprisionando o corpinho da garota entre o seu que dizia sem falar vem e o dela negando cheio de culpa ela disse antes não posso porque depois vou ficar cheia de culpa e ele disse naquela hora eu também só que ele porque no outro dia não iria dar continuidade a isso a essa coisa que um dia foi tão boa mas se era tão bom por que acabou? ela pensa e ela explicou ainda naquela hora antes dessa eu vou ficar com culpa porque porque porque e não saía a palavra nem nome nem nada tinha vergonha de si não posso porque não acho certo entende eu não estou agindo certo geminiano com ascendente em câncer sabe como é e ele o que é que tu tá falando esse negócio de signo todo jornalista acha de última hum? Tu acha que vai trair alguém é isso ele adivinhou fingindo ignorância porque desde um ano assumiu seu lado canalha e ela disse humhum é isso eu me ponho no lugar dele do Rapaz e me dá uma tristeza e ele disse que se fosse com ele ele não iria gostar embora entendesse o momento por causa do passado em comum e ela falou é foi por uma boa causa mas ele alfinetou sem dó que se era medo de trair então já era tarde que já tinha traído depois da cena na poltrona (mesmo que não tenha ido adiante até os finalmentes) e ela concordou é desde que eu aqui cheguei eu já estava traindo e falou isso tendo muita vergonha de si teve de novo vontade de chegar para o seu Rapaz e apertá-lo num abraço de urso e lembrou-se dos momentos juntos na última noite e da sua meiguice e desse dia do quanto ela aloprou por ele não ter esperado seu telefonema e de ter ido fazer farra na Goethe isso uma suposição que depois se confirmou quando ela ligou para sua grande amiga e ela lhe contou que tinha visto o Rapaz na Lancheria com o pessoal e ela ali na noite em pólvora de eleições todos em festa e ela ali só sozinha e sem seu Rapaz que devia estar a fazer farra na Goethe ficou puta ficou com o coração a explodir mágoa e aí foi que se dirigiu ao Estábulo na esperança de ali achar companhia agradável com a turma antiga e achou nada só esse tarado que virou seu ex um selvícola e então ele estava parado em sua frente em contraplongée e a coluna torta de horas sentado a escrever todos estes anos e até por isso a barriga ali caída por causa da postura e pegou esse mesmo corpo e atirou sobre ela novamente e foi até mais agressivo que naquela outra parte a da poltrona anterior e ela sentiu o cheiro daquela boca sem sentimento e só teve vontade de estar em casa e tomar um banho e se purificar mas não dá para purificar a consciência hum? Não se volta atrás nas ações e tudo tem seu preço isso ainda vai render muita coisa ruim esse momento de traição sim traição eu não mereço um garoto tão mimoso mas ele não é tão mimoso assim me abandonou a deusdará sem culpa alguma prefere a companhia dos guris apenas quer sair sozinho para se sentir ele mesmo mas ele não faria o que fiz faria? e pensava isso tudo enquanto tentava livrar-se do ex-urso de pelúcia aquele corpo pesado e aquela boca que não tem sentimento tão diferente tudo tão diferente quando se gosta e aí afastou o homem levantou-se a cara ardendo e ele desculpou-se novamente disse que está numa fase em que agarra qualquer mulher que apareça em sua frente e aí se deu conta da declaração infeliz e remendou não que tu seja qualquer uma não é isso eu gosto muito de ti mas é que eu tô assim meio faminto meio doidão eu não sei não posso ver mulher e foi fechando a casa saíram pela garagem a chuva caindo intermitente nada mudou aqui fora só dentro da gente e subiram a Barros Cassal ela sentindo a alma que era um esgoto e soube pelo vento que não voltaria mais àquele local e que não contaria esse espetáculo lamentável a amigo algum pensou no Rapaz se teria feito farra à mesma altura jamais faria Estábulo nevermore jurou para si