Está amorcegada na cama. A noite se foi, mas ainda é escuro. Ela acaba de se despedir do seu Rapaz; e agora rumina as horas de felicidade, carinho. Está deitada, ouvindo Pink Floyd (Atom Heart Mother, parte c). A paz inunda o quarto. Não escovou os dentes, nem tirou o cinzeiro, garrafas, copos e roupas que brotam do chão. Não fará. Ficará deitada, e aninha a cabeça ao travesseiro, o corpo envolvido pelo cobertor de lã. O leito está quente e lá fora faz frio, vento e chuva.
Então ela ouve.
Parece que há mais alguém em casa, talvez no corredor. Sons de batidas, tapinhas às paredes do apartamento. Uma construção antiga e ecoosa como uma caverna, qualquer barulho é ampliado de acordo com os caprichos da engenharia. A porta do quarto está aberta. Ela decide esquecer o barulho, não irá levantar-se para ver o que é. Insistente, o movimento aumenta e ela não consegue mais ignorar. Segundos se passam.
Vem do banheiro, conclui. Mas também do corredor, logo após a porta do quarto. Pensa no Rapaz, que não está ali para lhe fazer companhia no temor. Sim, o coração está aos saltos. Os olhos muito abertos tentam captar o que os ouvidos, desfalcados pela escuridão - o esquerdo está submerso no travesseiro de penas -, não conseguem alcançar. Ela não se mexe. Seja o que for, pensa, não vai deixar o quente ninho. Absurda, a idéia de mais alguém, outro ser vivo estar ali, a invadir sua solidão sagrada, é como imaginar roteiro de filme de terror classe z.
Então ele entra no quarto.
Todo negro e veloz, adentra o breu do ambiente. Aflito,
se joga às paredes; primeiro na do lado direito da cama, e logo
já explode o corpo à parede que fica sobre a cabeceira, e
se bate e grita: Cris! Cris!
De um pé só, ela se desvencilha das cobertas,
derruba um copo que descansava no chão, vazio da água que
antes acolhia, bebida pelo Rapaz. Assusta-se com o som de esfacelamento
do vidro, ela também grita. Acende a luminária, o coração
já à boca, é só o tempo de olhar para o ar
e vê-lo, sorrindo a gritar Cris! Ela se abaixa para tirar a cabeça
da mira das asas do ser escarnecedor, um minibatman ou minidemônio.
Sai correndo pelo quarto, tropeça numa garrafa de cerveja, também
vazia, se enfia na cozinha. O bicho infeliz a segue e explode o corpo contra
a porta - Cris!
No desespero, ela fecha a porta, batendo com força, assustada com os próprios berros de terror.
Então ela lembra de algo pior do que a existência do morcego dentro do quarto. Um problema real, não apenas da ordem estética. A porta não possui trinco pelo lado de dentro. Está, portanto, presa na cozinha, que possui somente este acesso, e uma janelinha basculante, por onde não passa uma só mão.
Merda, pragueja. O animal prossegue sua algazarra, que mais parece uma farra angustiante, porque ao mesmo tempo que chama Cris! se choca às paredes, acompanhado da música do Pink Floyd, que flui pelo ambiente, alheia ao que acontece.
Pega uma faca. Tenta em vão abrir a porta; enfim, decide enfrentar o bicho a ficar ali trancada, o vento frio a entrar pela janela, ela de pés descalços e camiseta, apenas. A faca entorta com o esforço, de nada adianta. Pensa em derrubar, arrebentar a porta, num chute. Sem chance, não fará. Não só pelo barulho (a esta hora! nem amanheceu e imagina a força para derrubar isso!), como pela própria curiosidade. Sim, sim. Ela, justo ela a passar por uma situação dessas... ela, que escreve contos trágicos, que adora criar situações absurdas, insólitas, com personagens inocentes... e agora, ela mesma a vítima da tragédia. Sim, pensa, e se morrer? E se não abrir a porta? E se passarem os dias e ela não aparecer no trabalho ou o vizinho desconfiar do cheiro de carne morta, avisar o zelador, e ambos destruírem a porta de entrada, encontrarem o corpo disforme, pútrido... sim, porque ela não clamará por socorro. Pelo menos enquanto estiver lúcida, não o fará. No refrigerador, se poupar, há víveres para pelo menos uma semana. Para aquelas necessidades, embrulhará os sólidos em sacolas plásticas de supermercado e as lançará pela tal janela basculante; já a parte líquida, poderá ser facilmente escoada pela pia. Dormirá nas roupas para lavar, que guarda atrás da porta (ainda bem que não fui à lavanderia, pensa). Pensa também no seu Rapaz, se irá se comover com sua morte.
Pensa, ainda, nas manchetes das editorias de Polícia;
ela, sugestão de pauta, material jornalístico. Bom, pelo
menos para alguma coisa vou servir, reflete. A única coisa que deseja,
então, é uma caneta (para descrever seus últimos instantes:
nunca se sabe, um registro fiel do derradeiro momento existencial poderia
virar uma bela história!). De qualquer forma, está condenada
a ouvir a mesma música do Pink Floyd - ao colocar o disco, antes
de deitar, quando tudo era a imagem da felicidade, e ela uma pessoa tranqüila
aninhada às cobertas, repleta de futuro, idéias e carinho,
apertou o botão repeat do aparelho.
Tudo bem, conforma-se. Morrerá ouvindo Atom Heart
Mother, nada mau. Algo excêntrico, pensa, e ri disso, desse pensamento.
Espera.
Silêncio.
Finalmente, o morcego desistiu. Ou não achou a tal Cris! ou talvez tenha se recolhido com o raiar do dia, que por sinal é nublado. Enfim, se foi.
Isso, porém, já não importa. Prosseguirá trancada na cozinha, de pés nus.
Simone Dias Marques