Enternecimento - Parte Um
por Bela Figueiredo

Quinta-feira é sempre um diazinho qualquer. Nada demais deste lado do front. Qualquer parte que se olhe é a mesma coisa: insosso, sem diferença alguma.

Suzana cantarolava qualquer coisa das Indigo Girls. Merda! Minha conta no raio do Banrisul está tão em baixa quanto o mercado russo. Eu vou dar jeito nisso qualquer dia, hoje não. Pro inferno esse tal gerentezinho Virgílio que liga dizendo "a senhorita pode acertar esse débito?". Detesto a palavra pendente!

Um maço de Marlboro e não passa das três da tarde, lembrou. O monstro do câncer que matara o avô meses antes espalhava seus tentáculos pelos pensamentos de Su (ela sempre gostou muito de apelidinhos diminutivos). Ah, afinal de contas "fumar é uma maneira disfarçada de suspirar", dizia o bom Quintana. Se tiver que morrer dessa peste que seja durante uma longa e deliciosa tragada.

Aquela tarde densa, o tempo escorrendo pelas mãos, mudou definitivamente a existenciazinha vulgar de Strawberry Girl.

O rapaz de calça surrada (e definitivamente suja), camiseta cinza que um dia deve ter sido preta entrou no estúdio com a bolsa atravessada no peito. Cabelinho oleoso, credo!, constatou Suzana.

Oi. Eu vou fazer as férias do Guaraci.

Enternecimento... A pelota de cabelo se enroscou na glote. Há muito não tinha aquela sensação que havia rendido horas de terapia.

- Ó, tudo bom?? Eu sou a Su, Suzana... não sei, como preferir. (E a bola ali, incomodando. Sempre que tinha aquela sensation era porque mais um surto de paixonite estava por vir). Ele soltou um tá e mais nada. Felipe abriu a porta lateral que desemboca no cubículo pertencente à Rádio Guaíba e foi pro telefone entrevistar o secretário da Administração. A pauta era extensa.

Ela de costas para a situação. Não poderia olhar pra trás. Não há motivo profissional pra olhar. Vou ficar quietinha. Calma Su, te controla! Prudência e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Controle... Não olha, tu não pode olhar esse guri sujinho. Ele está trabalhando e tu também. O ditado da mãe a assombrar Suzana... "minha filha, onde se ganha o pão não se come a carne". Tinha vontade esfolar Lair Ribeiro e a matar a mãe querida, mas repetir para si que não olharia, como em um exercício vagabundo de auto-ajuda, talvez resolvesse. Ela era visceral mesmo. Desde pequena fazia o que lhe dava na telha. Ô menina que deu trabalho!, ouviu a mãe repetir setecentas vezes. Por outro lado, bastava girar 95o ... É, é só virar o pescoço... quero ver esse cara de novo. Quero ver bem.

E o fez. Agora Inês é morta.

Naquele instante Felipe projetava o corpo em sua direção. Em uma das mãos a caixinha de morangos. Quer um?? - perguntou. Suzana: I don't believed!! Será que ele tá falando comigo?? E conseguiu largar: a-adoro morangos! Da outra parte um sorriso largo. Então pega, respondeu Felipe.

Suzana colocou os dedinhos afoitos na caixa e retirou um e mais outro. É... esta é minha fruta preferida e pode acabar de repente, né? - disparou com um sorrizinho besta atestando paixão completa e aterradora. Sempre que se apaixonava era assim mesmo: bestificada, burra, trocando os pés pelas mãos e as aulas na faculdade por noites sem fim em frente ao computador.

Devaneio, cara! Tô doida! Mal conheço essa criatura e já estou de quatro. Outra vez não. Obsessiva completa. Castrou.

Felipe voltou para o aquário. A caixinha na mão.

Se ele fosse uma bicha diria que os morangos combinam com minhas unhas carmim. Não disse então não deve ser. Não, ele é coleguinha jornalista mas se Deus existe, esse Felipe não é veado. Su era persecutória quando o assunto era homem-colega-jornalista-futuro caso. Meses antes andava enlouquecida por um que preenchia os quesitos acima com um plus: mais mulher que ela própria.

Resolveu testar. Pelo sim, pelo não, é melhor checar.

Bolou um planinho que obviamente foi desfeito ao bater seus três graus de miopia no caramelo de Felipe. Ser sexy sempre dá certo. As bichas não agüentam e somem, viram purpurina, riu.

Ô, Felipe... po-posso pegar mais um, um só, eu juro, sorriso amarelo e o dedos em cruz.

Pega. É nosso, respondeu Lipe. Ela já apelidara o rapaz. No diminutivo, claro.

Coisa querida!! "É nosso", repetiu Su dentro de si para poder acreditar. Ele sabe partilhar, é bondoso e come morangos. Isso! Um cara que oferece morangos a uma desconhecida só pode ser boa gente.

As horas seguintes foram por ali mesmo, no estúdio do doutor Carlos Ribeiro. A boca suja de morango e a Strawberry Girl cuspindo palavras, o indicador no canto esquerdo do lábio inferior fazendo carinha de quem tá gostando demais (odiava músicas de-mão-no-joelho-e-abaixadinha, mas ela fazia a tal carinha sim).

Daquele dia em diante, Felipe trouxe morangos todos os dias para Suzana.

Ele não apreciava apelidos. Nem longos nem curtos. Chamava de Suzana Maria mesmo, assim como foi registrada. Parasse com aquelas besteiras de Strawberry Girl.

Um detalhe: os morangos eram servidos no café da manhã, em sua cama, mesmo porque casaram-se um mês depois da primeira caixinha.


É, mãe, onde se ganha o pão não se come a carne mas a senhora não me alertou quanto aos morangos.

Bela Figueiredo