Era pretensão pra ninguém botar defeito. Prova é que o Arthur de Faria até hoje jura que foi dele a idéia que tive. Se soubéssemos que a acústica do auditório iria ficar como ficou, seria só pura insanidade. Junto com o Karam, montamos um festival de reabertura de quase 500 mil reais (tamanho de um Em Cena), que mostrei pra chefia da prefeitura. Tentaram me demover de tanta loucura. Aprovou-se um festival com todas as atrações locais prometidas pela proposta original e com menos de um quarto da grana. E ainda com uma puta pressão pra que a obra fosse inaugurada bem antes de 3 de outubro.
Sei lá como, a RBS ficou sabendo da modéstia da programação e quis entrar na festa. Pra eles, o Raul Pont já estava eleito (era julho ou agosto de 96), e até por isso mesmo queriam dar aquele algo mais, com cobertura total durante todo o mês de setembro e dois shows de impacto: um do Caetano Veloso (sugestão deles) e outro, "obviamente", do João Gilberto. Era uma saída boa, e como a proposta foi aprovada pela chefia da SMC, o namoro começou nos escalões inferiores.
Porém, houve nova discussão (em uma instância superior) e a decisão foi a seguinte: eu iria desfazer a sinalização positiva dada para a RBS e teria, em compensação uma grana pra um show de impacto. Assim, ganhei a possibilidade de cometer a referida loucura e, de lambuja, uma provável "boa vontade" da RBS pro Araújo. Senti que estava indo pro matadouro. Restava ver o que tinha no caminho, e quanto tempo levaria para percorrê-lo.
Neste meio tempo, houve gente daqui querendo contratar o João Gilberto para um show no final do ano, desde que fosse "exclusivo". Mas acertei os ponteiros com a empresária dele, que disse confiar em mim. Outra louca. Com o contrato assinado, a lona foi posta. Logo notamos que dita cuja promovia uma reverberação estrondosa (só os projetistas não admitiam) e que o teto não escoava bem a água da chuva. Foram feitas reuniões até quase a véspera da reabertura para decidir sobre o adiamento ou cancelamento de tudo.
O primeiro show da reabertura era muito complicado e foi tecnicamente sofrível. Mas era uma festa tal pela nossa segunda reeleição na prefeitura e os artistas são tão consagrados no meio que ninguém deu bola, exceto o Vítor Ramil. Depois, acertamos uma maneira de trabalhar a amplificação do som naquelas condições e os shows atraíram ótimo público, especialmente os do Nei Lisboa e os da mostra de pop/rock. O show do Bixo da Seda, que não se apresentava há 16 anos, foi realmente ótimo. Rolou de festival de coros a bandas marciais, passando pelo ótimo Raiz de Pedra. [Ao todo, foram mais de quarenta mil pessoas pra assistir músicos locais de vários gêneros, sem contar com os shows privados. A idéia da cobertura - realizada depois de vinte anos de polêmica - no primeiro momento, estava aprovadíssima. (O único erro que admito e me culpo, foi não ter convidado o Wander Wildner pra tocar.)]
No dia anterior ao show "do homem" chegou o técnico de som - Castor - e deveria chegar o equipamento de palco. Fomos pro aeroporto e saímos de madrugada com a promessa de que o equipamento estaria aqui e montado ainda de manhã. Quando voltamos, paramos no caminho pra tomar uns drinques e o Castor me contou algumas manhas do "seu" João. Uma delas é que uma vez "Ele" apertou a mão de alguém antes de um show que deu merda, e o culpado ficou sendo o aperto de mão. Uma sorte foi que "Ele" não foi passar o som. Eu testei o equipamento, senti na pele o quanto ficou ruim a acústica do Araújo, mesmo naquele útero que é o conjunto de microfones, amplificadores e caixas em que ele se apresenta.
Mas o João Gilberto estava muito bem humorado, em dia de "Joãozinho", muito contente com o convite e com a recepção. Gostou da matéria da ZH, dos telefonemas dos amigos, e, principalmente, de poder tocar pra cidade que ele tanto gosta e é grato. [No livro "Chega de Saudade" tem um relato não autorizado sobre o carinho de Porto Alegre com o nosso personagem].
Depois da passagem de som, caiu a maior chuva, e o Ferla (da ZH) testemunhou os caras da empreiteira furando a lona pra escoar a água. Na hora do show, ninguém do público notou, mas choveu muito lá dentro aquele dia. E com a chuva, fazia um barulho...
De noite estava tudo calmo, sem vento ou chuva. O Castor havia me contado que o João Gilberto tinha feito o presidente FHC esperar na platéia quase duas horas. Tempos depois do show do Araújo, "Ele" foi reabrir o velho teatro no Amazonas e o ACM (chefe dos baianos) se retirou da platéia pela demora. Aqui, ele deixou os petistas e os porto-alegrenses esperarem "apenas" por uma hora. Quando ele chegou, foi super gentil. Eu só não fiquei olhando como um bobo pra ele, como também pra namorada dele, uma ex-Miss Angola ou Moçambique, não me lembro mais. A primeira coisa que fez foi me chamar, agradecer muito, dizer que o produtor (que esqueci o nome) elogiou a passagem de som e que depois conversaríamos, e apertou a minha mão... Até a hora de descer pro palco, ele lavou as mãos umas dez vezes. Aí, me pregou uma peça:
- "Álvaro, preciso de você." (Era pra eu sentar próximo ao seu violão). - "Este acorde está razoável?" (Perguntava se estava afinado).
- "Sim", respondi ressaltando a minha cara de sonso, "está razoável".
Aí, ele arpejou outro acorde na região média do braço do violão, e eu não me controlei. Fiz uma careta de desaprovação, pois estava bem desafinado. O legal foi que aí ele me olhou com uma certa intimidade:
- "Veja só, esse violão é velho, tem o braço empenado."
- "Mas dá pra melhorar a afinação", retruquei. "Quem sabe a primeira corda..."
Ele deu uma melhorada na afinação e eu pedi pra ele tocar um acorde sem arpejar, com ele faz normalmente. Ficou razoável, e a equipe de produção dele respirou aliviada.
Mas "Ele" voltou a tensionar a situação, sempre na maior finesse.
- "Álvaro, eu não deveria me apresentar aqui. Quem sabe substituímos esse show por três noites no São Pedro. Você topa?"
Imaginem a minha cara... Respondi que o auditório estava repleto de pessoas que o esperavam muito e que haviam se sacrificado pra conseguir os ingressos. (O caso mais comovente de esforço foi o de um carregador de tacos do Country Club, que não conseguiu ingresso e era fã mesmo, me mostrando recortes de revistas e jornais da década de 60. Ele ficou o dia inteiro no Araújo. Eu disse pra ele agüentar a mão, sabendo que na hora daria pra entrar, como efetivamente deu. Quem apareceu na hora, entrou pela frente.)
- "E, além do mais, temos uma sala em homenagem ao Radamés aqui", emendei.
- "Mas como?", retrucou o "seu João". "Quem é este tal de Araújo Vianna pra ser mais importante que o Radamés Gnattali?"
Mesmo explicando que o Araújo foi importante e que morreu antes do Radamés, o João Gilberto estava "querendo mudar" o nome do auditório, com mais de três mil pessoas esperando o show há uma hora e meia... Finalmente ele concordou em se apresentar. A emoção era muito grande. Quando o Hamiton apresentava o cara, com aquela voz que anima nossos comícios e caminhadas, o João Gilberto botou o ouvido a funcionar. Era uma reverberação mundial.
- "Aqui eu não entro", sentenciou. Eles me deixaram de fora da decisão. Mas o Castor bancou o negócio. "Pode entrar "seu João", eu garanto". No final do show, mais uma vez, o Castor foi demitido. Depois, o Castor me disse que já tinha sido "demitido" outras vezes, e que voltava a ser chamado.
Como todos os presentes viram e ouviram, até a quarta música tudo estava ainda instável, mas o Castor ajeitou o som e foi aquela maravilha. Especialmente o silêncio do público, irrepetível e comovedor. Parecia um ato religioso do tempo em que os sacerdotes se davam ao respeito. Até aceitou pedidos, como "Chove lá fora", do Tito Madi. Depois do show foi outra história, que não vem ao caso.
Apesar de a ZH ter escolhido este show como o fato cultural do ano, logo depois a RBS começou o bombardeio. Primeiro com a fragilidade da lona às chuvas, defeito que foi consertado ainda naquele ano de 1996. A cada temporal ainda espero uma notinha na ZH: "nunca mais choveu dentro do Araújo Vianna". Agora, ainda tem o problema da acústica, que pouco foi notado naqueles dias. Antes do primeiro show, eu já havia indicado - por indicação do Olinto - um profissional competente para resolver o problema da acústica, que pelo que sei "já" apresentou uma solução. Como a lona tem uma vida útil de 9 anos - e está sendo bem cuidada - acho que ainda teremos, mais cedo ou mais tarde, um ano repleto de bons espetáculos, e, novamente, a aprovação da idéia da cobertura do auditório. O detalhe final é que ninguém falou do fato da loucura ter sido produzida por funcionários públicos, esses inimigos públicos número um. Mas tá tudo bem...
Alvaro Magalhães