Lata
por Jorge Furtado
 
Maria Eduarda e Benício estão juntos há dois anos. Ela não o agüenta mais, mas tem preguiça de desmanchar o namoro. Naquela tarde, Benício diz a ela que precisam conversar: ele gosta muito dela mas está em crise, precisa ficar sozinho uns tempos e quer terminar o namoro. Ela se esforça para não parecer feliz demais com a idéia, diz que tudo bem, eles podem continuar amigos. E vai para casa comemorar a liberdade com morangos e creme de leite.

A lata de creme de leite semi-aberta escorrega no balcão da pia e a tampa de metal faz um corte profundo no pulso de Maria Eduarda. O creme de leite e o sangue se misturam no chão da cozinha enquanto Maria Eduarda tenta improvisar um torniquete com um pano de prato. O sangue jorra de seu pulso. Maria Eduarda sai de casa e caminha apressadamente até o pronto-socorro, felizmente a poucos metros de sua casa.

A mãe de Maria Eduarda a encontra no saguão do pronto-socorro. Está tudo bem, só levou alguns pontos, está um pouco tonta porque perdeu sangue. Mostra o pulso enfaixado e explica o que houve, fala da lata de creme de leite. A mãe pergunta onde está o Benício. Maria Eduarda diz que acha que ele está na casa dele. Percorrem o caminho de casa em silêncio.

O pai de Maria Eduarda senta ao seu lado, na cama. Pergunta se ela quer mais suco. Ela não quer. Pergunta se ela quer conversar com ele sobre o que aconteceu. Ela diz que já contou tudo que havia para contar. Se ela quiser conversar, é só chamar. Claro, ela diz.

Todos os colegas perguntam o que houve. Ela conta da lata de creme de leite. A Crica não parece acreditar muito na história. E pergunta se é verdade que o Benício terminou com ela. Ela diz que sim. E todos ficam em silêncio.

A professora chama Maria Eduarda para conversar, depois da aula. Pergunta se ela está bem. Ela diz que está ótima, não foi nada. A professora sugere a ela que converse com a professora Cíntia, do SOE. Maria Eduarda pergunta para quê? Só para conversar, diz a professora.

A professora Cíntia é muito amável, simpática, oferece uma coca diet. Maria Eduarda diz não, obrigado. A professora Cíntia começa a falar sobre a adolescência, sobre o futuro. Diz que a vida de Maria Eduarda está apenas começando, que ela ainda vai conhecer muitos lugares e muitas pessoas diferentes e interessantes. E que na adolescência a gente é sempre muito dramático. Ela, pelo menos, era. Conta que uma vez quebrou todos os vidros do quarto numa briga com a mãe por causa de um namorado e que a mãe teve que chamar um vidraceiro e o vidraceiro era um gato e ela esqueceu do namorado, não lembra mais nem o nome. Mas lembra do vidraceiro. Maria Eduarda acha engraçada a história e pergunta se pode ir para casa. A professora Cíntia diz que sim, e que se ela quiser conversar é só chamar.

Maria Eduarda chega em casa e Benício está lá, com a mãe dela, na sala. Maria Eduarda diz oi, o que você está fazendo aqui? Benício diz que passou só para visitar, que queria saber se ela estava bem. Ela diz que está ótima e sobe para o quarto.

Maria Eduarda acorda no meio da noite, com a tevê ligada. Levanta e desliga. O pulso lateja e ela tem muita sede. Maria Eduarda vai até a cozinha. Pega uma caixa de suco na geladeira. Abre a gaveta do armário com cuidado para não fazer barulho e pega uma faca para abrir a caixa de suco. Não faça isso!, grita sua mãe, na porta da cozinha. Maria Eduarda leva um susto e deixa cair a caixa de suco. A mãe corre e a abraça, chorando. Minha filhinha, nós te amamos tanto, ela diz. Maria Eduarda diz, eu sei mãe, eu só queria tomar um suco. E a mãe diz, vai deitar, minha filha, eu levo para você.

Maria Eduarda entra na sala de aula e todos param de falar. Ela olha para Crica, que desvia o olhar. Maria Eduarda senta. A professora ainda não chegou. Crica se aproxima e pergunta se ela sabe que o Benício está namorando a Silvia Meneghinni, da 202. Se ela não sabe é melhor saber logo, que ela só está contando porque é amiga, antes que ela faça mais uma loucura.

Maria Eduarda se vira para Crica e diz bem alto, para que a sala inteira escute, que ela está pirada, que não fez loucura nenhuma, que eles todos é que estão loucos em pensar que ela tentou se matar cortando os pulsos por causa do Benício, que ela já queria terminar o namoro há muito tempo, que o Benício é um idiota cheio de espinhas, que ele fala "menas" e escreve atrasado com "z" e tem um pau deste tamainho assim. Ela ergue uma borracha verde, de aproximadamente seis centímetros, para ilustrar o tamanho do pau de Benício.

Ontem, ao tentar abrir uma lata de azeite, Benício cortou os dois pulsos.

Jorge Furtado