Sacanagem e sorte
por Bela Figueiredo

Ao invés de dóceis passarinhos cantando, das flores se abrindo e de toda a parafernália infinitamente brega que compõe a primavera, Marta tinha apenas a vaga sensação de que algo estava por acontecer. Nada apontava de parte alguma, só o tal arrepio que começava na parte superior do estômago irradiando uma onda febril para o resto do corpo. Isso é aviso de desgraça. Quando sinto isso é por que vem merda por aí. Melhor não neurotizar.

Saiu cedo, mochila nas costas. Era sempre assim, um suplício ir para a biblioteca. Aquele verdadeiro ritual satânico por que é composta a rotina: a língua ardendo de Close Up, olhos mareados e um café rápido para espantar os fantasmas. Marta estuda Letras na PUC e é bolsista da Biblioteca Pública de Porto Alegre. Cinco minutos pra sair o Rio Branco e eu nem me despedi de Morfeu. Merda ser proletária sacana! Pegar esse ônibus abarrotado de vermes. Isso que dá ter 22 anos e nenhum pro lotação, mas vamos lá garota, a vida é uma putaria mesmo, pensou.

Desceu no Mercado Público e seguiu até a Praça da Matriz no piloto automático. Os três salários mínimos que ganhava na biblioteca mais o dinheiro que o pai mandava tinham que dar até o fim do mês. A mãe sumiu no mundo quando Marta era bem pequenininha. Nem lembrava do rosto da progenitora. Morava sozinha e apertada no JK sombrio e úmido. Nada de matar a tia Geci no meio do caminho. Já matei a velha mês passado, raciocinou. Tinha mesmo que trabalhar pra ser alguém na vida, como não cansava de dizer o canalha do pai que só prestava pra mandar uma grana e nada mais. Pô, acho que tem uns dois anos que não vejo meu velho..., lembrou. Seu Darci pouco se importava com a menina. Desde que não pegasse barriga tudo bem. É, melhor nem pensar. Só quero os quatrocentos paus desse sem vergonha. Eu me viro.

- Bom dia, Marta!

Luiza e sua disposição matinal enjoavam a menina de cabelos cacheados e roupinha encardida . Um movimento vertical com a cabeça era o máximo que Marta podia ceder às sete e meia da manhã. Até o meio-dia sequer levantava os olhos da pilha de livros que devia catalogar até o fim de outubro. A relação das colegas era composta pela cordialidade e alegria demasiada de Luiza e pela postura moribunda de Marta. Essa tinha ganas da primeira. Vontade de dar uma bofetada nessa balzaquiana serelepe. O que é isso? Alegria de manhã cedo me dá ânsia de vômito, calculou.

Duas da tarde e Luiza teria que se ausentar do posto de burocrata-convicta-estagnada para comprar absorventes. Essa maravilha sempre vem quando menos espero. Sabe Marta, sempre fui desregulada. Bem moça e a enxurrada vinha quando bem decidia. Já volto, querida. (E a boca esparramada bem no meio da cara). Marta tinha vontade de arrancar o sorriso de Luiza com língua e tudo quando a colega começava com aqueles assuntos escatológicos. Todo mês a mesma ladainha: Luiza tinha que colocar no jornal que estava sangrando. Tá. Vai. Eu cuido das coisas por aqui, respondeu a menina. E Luiza saiu. Que mulher porca, cara! Vê se eu, Nietzsche na estante e Camus na cabeceira, preciso ouvir essazinha me falar de menstruação. É... estou pagando algum pecado. Na outra encarnação devo ter sido madrasta. E seguiu fazendo as fichas. Com os seus botões, Marta começava a se preocupar com a coleguinha sanguinolenta. A mulher não volta. Saiu tem mais de duas horas. De vez em nunca a menina tinha repentes cristãos. Se permitia pensar nos outros, ter pena, essas coisas de seres humanos. Acabou sucumbindo e ligou para o celular da colega. Do outro lado, voz masculina. É sete-meia-meia-quatorze-nove-cinco? - perguntou Marta. É, moça. A senhora é parente do defunto?, disparou a voz do perito do IML. Que defunto, meu filho?! Esse não é o celular da Luiza?, rebateu Marta.


Apenas um tiro na jugular havia arrancado a vida de Luiza. O corpo dela fora encontrado num apartamento poluído da Avenida Borges de Medeiros. Marta gravava tudo em seu winchester: o vestido amarelo-pancreatite da colega coberto de sangue, a arma no chão e o pacotinho de absorventes com a nota da Panvel grampeada em cima. E como sempre o suicida deixa um bilhete, o de Luiza estava lá:

"Já que nunca pude trazer ao mundo os filhos que queria, escrevo estas mal-traçadas linhas a quem interessar possa. A minha estória é triste. Advirto que cardíacos não devem ler desta frase em diante. Aos vinte e quatro anos um tumor se instalou no meu ovário esquerdo. A biópsia declarou: maligno. Entrei na faca. Retiraram um pedaço de mim, aliás, o pedaço mais importante de mim. O médico avisou que dali em diante ‘nunca mais’, foi assim mesmo que ele disse, ‘nunca mais’, com todos os enes e as, eu poderia engravidar. Tempos mais tarde, uma metástase tomou conta do meu útero. Mais uma cirurgia. Outro pedaço para engordar o lixo hospitalar. Então, todo mês eu finjo que menstruo, assim, como qualquer mulher de verdade. Compro modess e tudo. Eles estão aí como prova. Me tratei em psiquiatra, tentei macumba, simpatia, budismo, acendi vela pra Santa Rita dos Casos Impossíveis. Nada mudou. Aí que entra o Renato. Nos conhecemos há um ano e meio, ele me beijou, foi o primeiro que eu deixei chegar perto. Tinha medo que não me quisessem já que eu era aleijada. É, eu me via como uma aleijada. Aí, o Renato queria um filho. Eu amava o Renato e o Renato amava o meu dinheiro.

"Trabalhava na biblioteca por que me sentia muito só. Depois que mamãe morreu, o que é que eu faria naquela casa enorme? Mamãe era a única criatura que eu tinha. Nada de sobrinhos, irmãs, enfim, parentes de qualquer espécie. Mudei pra esse apartamento, tirei biblioteconomia porque no ambiente solitário dos livros ninguém apareceria para desvendar minha desgraça. Nenhum homem se aproximaria, sabe?, mas o Renato era viúvo, sem filhos, morava ali na Duque e se distraía com a leitura. Um dia veio pedir um Machado de Assis e acabamos na cama. Eu não tenho útero nem ovário, mas tenho libido e amor pra dar. Como diria a ele que era aleijada? Não dava. De jeito nenhum! Hoje, uma semana antes do nosso casamento, resolvi acabar com essa mentira. Como na música, digam ao Renato 'que eu fui por aí'. Jamais contem a ele sobre a verdade; ele não suportaria ficar sem a mãe dos seus filhos e sem os milhões. A parte que ele mais gostava em mim era o saldo bancário, eu sabia, mas não podia passar pela vida sem experimentar o amor. Lia fotonovela e sabia que o amor era possível, mesmo que o vínculo fosse financeiro. Ó, do suicídio podem falar sim, mas sobre as anomalias me poupem e a ele também. Eu imploro!"

Assina Luiza Monteiro. Uma seta no canto direito da página indicava: vire. Marta, mãos trêmulas, leu o PS. Lá estava: "Marta, a moça que trabalha na biblioteca, deve contatar o doutor Felipo Sant'Anna e tomar posse de todos os meus bens. Mesmo sem nunca ter me mostrado os dentes, escolhi a Marta como herdeira porque é outra: muitos livros e nenhuma alegria. Digam à menina que não se assuste, a vida é uma putaria mesmo, como a própria não cansa de frisar."

Marta deixou o apartamento com o peso do mundo sobre as costas. Agora tinha todo o dinheiro que precisava para viver essa e outras dez vidas. Nunca mais se preocuparia com o aluguel nem teria remorso por não visitar o paizinho querido que, afinal de contas, prestava pra alguma coisa: dar quatrocentos paus por mês.

Daquele dia em diante depositou rosas vermelhas no túmulo de Luiza. E tomou todos os chopes que quis, e comprou todos os CDs do Pink Floyd e foi ao cinema três vezes por semana, mas passou a acordar com uma sensação estranha... A imagem da colega enjoada e morta e bondosa bem ali, na sua frente. E no início de todas as primaveras tinha o corpo febril e a alma encharcada.

Bela Figueiredo