Transparências e maledicências
por Carlos Gerbase
 
No cenário do cinema gaúcho, há um embate interessante (e nem um pouco "bunda", no meu entender) entre duas gerações de cineastas. O último capítulo deste embate está no CAC (Cooperativa Artigo de Cinema) de novembro, na forma de um artigo de Flávio Guirland Vieira, intitulado "Super-8, 16 ou 35mm?". Mais uma vez, como o prazo de entrega das matérias para o "NÃO" estava se encerrando, lembrei de meus amáveis detratores e resolvi retaliar. Nada pessoal, é claro. Até porque o Flávio e os demais magríssimos são boa gente (e representam o futuro do cinema gaúcho). Então, vamos lá:

1 O Flávio diz que, no Festival de Gramado, os super-oitistas são "agraciados com Kikitos de chocolate (terá sido uma piada)?" E dá a entender que isso é uma forma de desprestigiar a categoria. Sou obrigado a defender o festival de Gramado (que tanto já critiquei por outros motivos). O Flávio não percebe que o Festival manteve a competição na bitola quando havia milhões de motivos para eliminá-la. Durante anos, só passava MERDA no super-8, sempre dos mesmos (poucos) realizadores paulistas, que competiam entre si pelo direito de subir naquele palco e levantar um prêmio (inclusive Kikitos de verdade) altamente discutível. Isso transformou o festival de super-8, antes tão importante, pela quantidade e qualidade dos filmes, numa piada. Mas o Festival resistiu, contra tudo e contra todos, até que, há dois anos, vieram os magríssimos gaúchos, com boa quantidade e alguma qualidade. E o super-8, o cadáver que ri, passa muito bem, obrigado. Quanto ao caráter achocolatado do prêmio, acho que não tem mesmo sentido dar Kikitos pro super-8 ou pros vencedores da competição gaúcha. Quando o "Inverno" ganhou o festival super-8, o prêmio era uma escultura representando uma arvorezinha. Bem simpático. Guardo até hoje. Mas se fosse um Kikito de chocolate eu não iria reclamar. E, como provavelmente seria comido por toda a equipe, seria mais simpático ainda.

2 Diz também o Flávio: "Cada bitola pode gerar um modalidade distinta de cinema, várias formas de se pensar cinema." Aqui nossas posições são absolutamente antagônicas. Quando começamos a fazer super-8, lá pelo fim da década de 70, diziam que não fazíamos cinema. Que estávamos, no máximo, nos preparando para fazer cinema. E nós, é claro, reagimos dizendo que super-8 era cinema, e melhor cinema que muita merda de filme feito em 16, 35 ou 70mm. Continuo achando isso. E continuo achando que as formas de "pensar cinema" não têm nada a ver (ou pouquíssimo a ver) com a bitola utilizada. Quando dizíamos que nosso cinema era "alternativo", dizíamos que o super-8 era a única alternativa, e não uma bandeira estética ou ideológica. É tudo uma questão de grana, ou melhor, de relação custo-benefício. Pensar que as características técnicas do super-8, ou de qualquer outra bitola, pode determinar "como sairá o produto final" é uma afirmação mais que redutora. É ingênua. Lembra aquela sacada "genial" de um pesquisador, que, ao lembrar o caráter balançante da primeira filmagem realizada no Brasil (a câmara estava num navio, na baía da Guanabara, apontada para o Rio de Janeiro), disse que o cinema brasileiro já nasceu experimental. Pelamordedeus... Esse tipo de coisa deveria ficar restrito às teses de doutorado.

3 Diz o Flávio: "A película de 35mm, devido à alta definição de sua imagem, parece ter mais afinidade com uma estética de transparência, uma representação naturalista da realidade. Com uma câmara mais firme e movimentos mais suaves, a imagem desliza. Os formatos dos planos são absolutamente convencionados, de forma a não provocar no espectador nenhuma estranheza, e sim uma identificação instantânea com o posicionamento da objetiva". Aqui fica clara a confusão entre a ferramenta tecnológica e o artista que a manipula. Parece que, em cem anos de história do cinema (formada, em sua quase totalidade, por filmes em 35mm), a "representação naturalista da imagem" foi a única forma de filmar. O expressionismo alemão, o surrealismo de Buñuel, o neo-realismo italiano, as vanguardas de todas as épocas, o existencialismo de Bergman, os cinemas novos dos anos 60, a experimentação dos curtas da década de 80, o barroco-gay-power de Almodóvar, o estranhamento de David Lynch, as pirações mal-educadas de Cronemberg, a fragmentação temporal de Tarantino, enfim, essa montanha de filmes responsáveis pela evolução do cinema não fazem muita diferença?

4 Um pouco mais adiante, Flávio diz (ainda se referindo ao 35mm) que "trata-se de um discurso extremamente codificado, que procura camuflar qualquer intermediação entre o espectador e o que se passa na tela. Pelo menos, assim o são os filmes mais convencionais". Não entendi. A relativização - agora são apenas os "filmes mais convencionais" que se utilizam da "transparência" do 35mm - destrói tudo o que foi dito antes pelo Flávio. O que é um "filme convencional"? Ora, se acreditamos que é possível fazer um filme não convencional em 35mm (e é bom acreditar), é óbvio que também é possível fazer um filme convencionalíssimo em super-8. Existem aos montes. Em 16mm? Aos milhares. Milhões. Não sei qual é a corrente de pensamento estético-cinematográfico que o Flávio prefere, mas me parece que ele é mais uma vítima da semiótica de bula de remédio. Ao denunciar um "discurso extremamente codificado" parece sugerir que um filme pode ser "pouco codificado" ou "não codificado". É mais ou menos a mesma confusão que fazem os infelizes inventores da "linguagem da TV" ou da "linguagem do super-8". A escrita confundida com a gramática. As diferentes maneiras de usar o código confundidas com novos códigos. Vamos parar com essa bobagem. Quem sabe escrever escreve a mão, em máquina de escrever, no computador, na internet, na puta-que-pariu. Quem sabe filmar filma com super-8, 16, 35, 70 ou VHS. Quem não sabe tenta inventar uma "nova linguagem".

5 Em relação ao 16mm, Flávio fala que "inconscientemente, associamos a imagem do 16mm ao filme documental e à sensação do 'eu estive lá'. " Tenha dó, Flávio. Qualquer fotógrafo sabe que as emulsões (gelatina mais sal de prata, ou seja, onde fica a imagem) das películas 16 e 35mm são idênticas. Iguais. A única diferença é o tamanho do fotograma e, por conseqüência, o tamanho máximo da tela onde ele é projetado. Mais uma confusão. O uso do 16mm para documentários é uma questão de custo-benefício. É uma questão econômica. Vamos admitir que o tamanho do equipamento é importante, possibilitando "uma imagem muito mais ágil, uma câmara muito mais nervosa", mas daí a dizer que o 16mm é "uma outra forma de identificar o espectador com o filme" vai uma distância enorme. Cada vez mais, infelizmente, o 16mm é tratado quase como lixo pelos laboratórios. Sobrevive com eventuais produções para a TV, clips, comerciais de orçamento médio e filmes de estudantes. 16mm? Eu tô fora. É caro pra burro, sempre dá problema na finalização, os festivais discriminam e quase ninguém vê. Mas parabéns para quem consegue driblar isso tudo e fazer um bom filme.

6 E aí vem o super-8. "É a própria precariedade do dispositivo que autoriza uma afastamento ainda maior das convenções cinematográficas e livra a imagem de qualquer compromisso mais sério com seus códigos representativos", escreve o Flávio. É duro ter que defender as "convenções cinematográficas". Mas sou obrigado a isso. Quem tem alguma coisa a dizer, e quer dizer de um modo a ser entendido, precisa das convenções cinematográficas. Quem não tem nada a dizer, ou fala para si mesmo, provavelmente xinga as tais convenções e, mais provavelmente ainda, usa-as da pior maneira possível. Os códigos representativos da linguagem narrativa audiovisual, estabelecidos por Griffith no início do século, valem para super-8, 16mm, 35mm, vídeo doméstico, TV de alta-definição e mais o que for inventado nos próximos anos baseado em imagens bidimensionais em movimento acompanhadas de som sincronizado. Um bom filme super-8 é aquele que bem utiliza as velhas (velhíssimas) convenções cinematográficas, os antigos (antiqüíssimos) códigos representativos, para construir uma narrativa capaz de levar o espectador a uma experiência intelectual e sensorial de qualidade. A "qualidade", é claro, é um conceito relativo. Tem gente que se emociona com os vídeos do Baiestorf (não pude evitar, desculpem), com os filmes do Ivan Cardoso, com os livros do Paulo Coelho.

7 Mas o que me levou (mesmo) a escrever esse texto foi o seguinte trecho no último parágrafo: "É claro que gostaríamos todos de filmar em 35. Mas infelizmente não é possível. Pelo menos no início. Não há recursos suficientes. E o pouco que há (isto sim é vergonhoso), é disputado por todos, grandes e pequenos. Tanto por aqueles que necessitam, quanto por aqueles que já estariam em posição de conceder, de fomentar". Ora, se os magríssimos defendem uma maior experimentação narrativa, uma maior liberdade temática, enfim, o "novo" (seja isso o que for), a pior coisa que pode acontecer (segundo o Flávio) é dar-lhes uma câmara 35mm. Ficariam restritos à "representação naturalista da realidade", à "câmara mais firme", aos "movimentos mais suaves", aos "planos absolutamente convencionados" do 35. E perderiam o caráter revolucionário, transgressor, metalingüístico do super-8. Mas o que diz o Flávio? "Gostaríamos todos de filmar em 35". Então querem se adaptar? De que maneira? Através de uma disputa, digamos, mais paternalista dos cineastas "da antiga", que acabam ficando com a maioria dos "recursos existentes" (imagino que o Flávio esteja falando dos apoios públicos para produção, tipo Fumproarte, ou concurso de curtas do estado, ou LIC, ou Lei do Audiovisual). O texto não deixa muito claro quem são os cineastas "grandes" ou que "já estariam na condição de conceder, de fomentar", mas deixa explícito que é "vergonhoso" haver essa disputa. Eu, que tenho quase um metro e noventa, vesti a carapuça. E confesso que não entendi qual é a "vergonha" de que fala o Flávio. Já fui presidente da APTC, conheço muito bem qual é a posição da entidade em relação aos concursos e acho que os magríssimos devem dar graças a Deus que a APTC sempre defendeu o que defende (inclusive cláusulas que garantem espaço para os estreantes). Quando a minha geração começou a fazer cinema, a situação era bem diferente. Não sei que tipo de concessão o Flávio pretende. Mas eu voto contra. Quero que os recursos públicos sejam distribuídos de forma democrática, transparente, através de concursos (disputas!) com um júri honesto e competente (o que talvez seja a coisa mais difícil). Quero que cineastas de vinte, quarenta e oitenta anos possam disputar esses poucos recursos de igual para igual, preservando um espaço para os de vinte, porque, como se sabe, os jovens filmam melhor do que escrevem ou pensam. E o novo sempre vem.

8 Finalmente, um exemplo: o filme "Velinhas", do Gustavo Spolidoro, de longe o mais bem sucedido produto da geração magríssima, foi realizado em 16mm. Mas poderia ser em super-8 (era só disfarçar os cortes, como em "Trama macabra"). Poderia ser em 35mm, com a câmara num steady-cam. Então por que foi em 16mm? Porque o dinheiro disponível (via Fumproarte, dinheiro público, é bom lembrar) era compatível com os custos dessa bitola. E digo mais: se fosse super-8, seria um filme pior, de fotografia ainda mais precária e som terrível. E se fosse em 35mm, com mais grana pra fazer a luz, seria um filme muito melhor, com muito mais possibilidades de chegar ao público, de conquistar mais festivais, etc. A narrativa de "Velinhas" é totalmente acadêmica, realista, transparente. Ou será que fazer um filme em um único plano é uma revolução estética, uma grande transgressão cinematográfica? A nova geração já deu sinais de vitalidade em vários outros filmes. Mas, acreditem ou não, isso tem muito pouco a ver com a escolha da bitola. Isso tem a ver com a manipulação da linguagem, com a coragem de filmar uma boa história de um jeito criativo. E, de certo modo, com a humildade de perceber que o espaço nesse minifúndio chamado cinema gaúcho deveria ser conquistado com talento, com competência, com profissionalismo e com bons filmes. Infelizmente, não é sempre que isso acontece. E essa deve ser a nossa luta. Vamo nessa, magríssimos!

Carlos Gerbase