A Incrível e Verdadeira História do Final Falso

por Jorge Furtado

 

Atenção! Neste texto, que narra a história de uma incrível coincidência (tão incrível que eu ainda duvido que seja uma coincidência), eu vou contar o final do livro "Invertendo os Papéis", de David Lodge. Se você pretende ler livro (o que eu recomendo) não leia este texto!

 

David Lodge nasceu em Londres em 1935. Mestre em literatura inglesa, crítico estruturalista e roteirista, tornou-se mundialmente conhecido pelos seus romances, aventuras muito divertidas que misturam amores improváveis, questões morais (geralmente teológicas) e teorias literárias. Suas narrativas geralmente seguem esquemas matemáticos simples (ele reconhece ter "uma tendência pelas estruturas binárias") numa espécie de versão pop dos desafios auto-impostos da turma do "Oulipo" (Ouvroir de Littérature Potentielle, grupo fundado por Raymond Queneau ao qual pertenciam, entre outros, Georges Perec e Italo Calvino. Perec chegou a escrever um romance inteiro sem a letra E, a mais comum no francês). Lodge é menos radical e mais engraçado. Sua narrativa, mais que um suporte, é o próprio assunto. Seu primeiro livro lançado no Brasil foi "Terapia" (Scipione Cultural, 1997), a história de um autor cinqüentão em crise afetiva e profissional. Para quem, como eu, sofre para ler em inglês, há mais cinco traduções lançadas em Portugal: "Até Onde Se Pode Ir", que narra a trajetória de oito jovens católicos através da revolução sexual dos anos 50 e 60; "Notícias do Paraíso", aventuras de um jovem teólogo inglês e seu pai numa ilha tropical; "Um Almoço Nunca é de Graça", estranha relação entre uma professora de literatura e um tosco gerente de uma indústria, "Contos de Verão, Histórias de Inverno", pequena reunião de contos precedida de um ótimo ensaio; e "O Mundo é Pequeno", seu livro mais farsesco e engraçado, ambientado em congressos de literatura. "O Mundo é Pequeno" é uma continuação, vinte e cinco anos depois, da história de Philip Swallow e Morris Zapp, personagens de "Invertendo os Papéis", o outro livro dele lançado no Brasil (também pela Scipione) e do qual eu vou contar o final (só para lembrar, ainda dá tempo de você parar de ler este texto).

Swallow é professor de poesia inglesa, católico, careta e reprimido. Vive na cinza e úmida universidade de Rummidge, com mulher e filhos. Zapp é um brilhante professor de teoria do romance na universidade de Euforia, na Califórnia, onde vive numa bela casa de frente para o mar. Tem um carro esporte, algumas amantes e uma ex-esposa. Um convênio entre as duas universidades faz com que Zapp e Swallow troquem de posto, de cidade, de vida, e até de mulheres. Tudo isso em 1969, quando as universidades transbordavam revolução e hormônios. Swallow não sabe nada de teoria do romance e pede que Zapp lhe envie, pelo correio, um pequeno volume intitulado "Como escrever um romance", que ele tem em sua biblioteca em Rummidge mas nunca leu. A viagem do livro, que se extravia nas oficinas do correio, percorre os seis capítulos do romance, cada um deles escrito num estilo diferente (narração na terceira pessoa, cartas, notícias de jornal). No último capítulo, O Final, escrito como um roteiro de cinema, Morris Zapp, Philip Swallow e suas respectivas esposas e amantes (Hilary e Désirée) se encontram num quarto de hotel em Nova Iorque para resolver o conflito.

Passo a reproduzir aqui o diálogo da página 287:

(a tradução é de Lídia Cavalcate-Luther)

MORRIS: (para Philip) Os paradigmas da ficção são essencialmente os mesmos, não importa o meio. As palavras ou as imagens não fazem diferença para o nível de estrutura.

DÉSIRÉE: "O nível de estrutura", "paradigmas" Como eles adoram essas palavras abstratas.

PHILIP: (para Morris) Não acho que é inteiramente verdadeiro. Tomemos a questão do fim, por exemplo.

DÉSIRÉE: Isso mesmo, vamos analisar a questão do fim!

PHILIP: Você se lembra daquela passagem do Northanger Abbey em que Jane Austen diz que seus leitores devem ter adivinhado que o final feliz estava chegando a qualquer momento.

MORRIS: (confirma com a cabeça) Citação: "Ao ver os indícios da compressão das páginas à frente, sabiam que estávamos nos apressando juntos para a perfeita felicidade" Fim da citação.

PHILIP: Isso mesmo. Bem, isso é uma coisa que o romancista não pode esconder, não é? Que este livro está para acabar a qualquer momento. Talvez não seja um final feliz, hoje em dia, mas não há como esconder os indícios da compressão das páginas.

 

(Neste momento eu, leitor, confesso que dei uma rápida olhada para ver quantas páginas faltavam para acabar o meu livro. Senti o volume das folhas entre os dedos e calculei: trinta, talvez mais. Voltei à leitura).

 

(Hilary e Désirée começam a ouvir o que Philip está dizendo e ele se torna o foco principal de atenção.)

Quero dizer, mentalmente você se prepara para o final de romance. Enquanto está lendo, fica consciente do fato de existe apenas uma página no livro e está prestes a fechá-lo. Num filme, porém, não há como saber, especialmente hoje em dia, com a estrutura mais aberta, mais ambivalente, do que costumava ser. Não há uma maneira de saber que imagem será a última. O filme continua, como a vida continua, as pessoas se comportando, fazendo coisas, bebendo, falando e nós as assistimos, e, num certo ponto, o diretor escolhe, sem aviso, sem as coisas estarem resolvidas ou explicadas, ou completas, pode simplesmente... terminar.

(Philip dá de ombros. A câmera pára, congelando sua imagem.)

 

Virei a página e me deparei com uma folha em branco. Virei outra página e li, lá embaixo, em letras pequenas:

O texto foi composto em Rotis Serif,

corpo 11, entrelinha 14.

Na sobrecapa foi utilizado o papel...

Virei a folha e lá estava outra vez a página 257. Voltei para trás. Da página 284 o livro voltava à página 257 e daí seguia, outra vez, à página 284. As últimas 27 páginas eram falsas! O livro terminou! Fiquei pasmado, com o livro na mão. Era simplesmente genial, brilhante. Lodge pega o leitor numa armadilha perfeita: no exato momento em que afirma que "o romancista não pode esconder (...) que este livro está para acabar a qualquer momento" uma vez que "não há como esconder os indícios da compressão das páginas", ele demonstra que sim, que o romancista pode esconder que o livro está para acabar, simplesmente incluindo em seu final um caderno de páginas falsas! Não via um final tão surpreendente para um livro desde O Assassinato de Roger Ackroyd.

Fiquei me coçando para comentar com alguém o final mas não podia, sem estragar o prazer da leitura. Felizmente a Nora resolveu levar o livro para a praia, nas férias. Aguardei ansiosamente que ela chegasse ao fim. Quando vi, pela marcação feita com a orelha, que ela estava terminando, peguei o livro pra ver quantas páginas a separavam da surpresa final. E descobri, chocado, que não estavam lá as páginas falsas! Não acreditei no que estava vendo. Examinei o livro em detalhes, procurando vestígios de folhas arrancadas. Eu não podia ter imaginado aquilo. E também não podia comentar com ela, sem estragar o final. Examinei outra vez, e outra. Estava lá, depois da página 284 e das duas tradicionais folhas em branco, a contracapa. O final falso sumiu. Quando ela terminou, contei a ela do mistério. O veredito foi implacável: tu viajou. Tive que admitir, como ensinava Sherlock Holmes, que sendo todas as outras hipóteses impossíveis, a restante deve ser obrigatoriamente verdadeira. Era isso. Viajei. Eu inventara aquele final. Sonhei com ele, um delírio, foi isso. Mas não podia ser. Passei os últimos dias de férias com esse mistério que volta e meia emergia entre as ondas. Eis que, na hora de fazer as malas, ouvi o meu filho Pedro pedir: "Alcança o meu livro". "Teu livro? Esse livro é teu?" "É." Uma luz brilhou na escuridão. Aquele não era o meu livro. Talvez no meu livro...

Entrei em casa, deixei as malas na entrada e corri para o escritório. Lá estava o meu livro. E lá estavam as 27 páginas falsas! Eu não viajei. Um erro de paginação da editora? Impossível. Reli o texto da falsa última página: "o romancista não pode esconder (...) que este livro está para acabar a qualquer momento" uma vez que "não há como esconder os indícios da compressão das páginas". Outra hipótese: alguns exemplares tem este brilhante truque final e outros não. Outra: uma brincadeira de um paginador literato. Outra?

Perguntei a amigos que têm o livro. Dois me informaram que o exemplar deles não tem as páginas falsas. Procurei numa livraria, um único exemplar: sem as páginas falsas. Depois de uma rápida pesquisa, constatei que apenas o meu exemplar tem este final, um dos mais engenhosos que eu já vi. Acho que vou mandar este texto ao David Lodge sugerindo o meu final, muito melhor que o dele.