A ÚLTIMA VEZ QUE BEBI TANTO PROLIFERARAM IDÉIAS

Daniel Portaluppi Feix

1998.

Cada passada conduz a um destino aparentemente indesejado. Sempre que levanto o pé tenho dificuldades para carregá-lo até onde manda a vontade. São cerca de quatro horas na fria madrugada de agosto em Porto Alegre. Em busca da cama quente e confortável, caminho ansioso. Mais para os lados do que para a frente, prossigo ordenado pela tontura. Os passos seguem indefinidamente em ritmo de anestesia alcoólica. A última vez que bebi tanto proliferaram idéias.

Ainda bem que não comi antes de beber. O sólido rouba o espaço do líquido, limitando sua ação. Faz sentir sono, traz o peso para dentro do corpo. Eu prefiro flutuar, pairar sobre tudo e analisar a globalidade das coisas. Tomar distância. Refletir. Lembro de uma frase de autor desconhecido para mim neste momento: "a comida embrutece, a bebida espiritualiza".

No meu lado esquerdo tem um ser indescritível. Muito próximo de mim, a observar-me. Como vigia. Tem traços humanos, caminha num ritmo semelhante ao meu, sem falar. Aparenta concentração. Não sei o porquê, mas anda calado, observando apenas. Seus olhos são os maiores que já vi, não piscam, somente analisam. Penetram na intimidade do objeto avistado, decompondo-o totalmente. Não recrimina nenhuma atitude errada, não aplaude nenhuma atitude correta. Examina internamente. Deve fazer o estudo mais minucioso já visto, assim parece. Me olha como quem avista uma vítima, pronta para ser dominada. Sua intensidade espantosa, dispensando o piscar fundamental é assustadora. Intrigante.

Já pensei em falar com ele. Não tive coragem. Mas já tentei tocá-lo. Não consegui. Movimentei meus braços em sua direção, e ele continuou a olhar-me como vem fazendo desde que comecei a caminhar. Tentei abraçá-lo, e ele não reagiu. Meus membros o atravessaram sem tocá-lo, chocando as palmas das minhas mãos uma contra a outra. Parecia um efeito especial hollywoodiano. Como numa mágica, seu corpo me ignorou. É um fantasma, sem dúvida. Por medo ou por susto, decidi ignorá-lo e seguir.

Andando pelos lugares mais sombrios da cidade, bairros perdidos em becos frios e escuros, ao som do vento zunindo como um chato a expulsar-me, quase congelado, não posso perder tempo. Ameaças de assaltos e de violência brotam insistentemente na minha cabeça. A bebida trazendo um certo alívio, uma pequena dose de serenidade. Como uma conselheira, dispensando pelo menos um pouco o frágil sentimento, fazendo-me ouvir o instinto racional, mais sábio que o coração. O álcool naquele momento rouba parte da minha sensibilidade, me acalmando um pouco, o suficiente para afastar o desespero. Mesmo assim sigo amedrontado. Se não tivesse bebido, seria pior.

Do outro lado da rua, à direita, há um sujeito com cara de mapa. Travestido de geografia, caminha com o pânico perseverante nos andantes das madrugadas. Olho para o seu rosto, noto as lágrimas. Olhos fechados, boca semi-aberta, suor. Desprovido de felicidade, com a cabeça baixa. Deixa transparecer sentimentos, notáveis, evidentes tamanho a aflição. Pela pele aflora um medo intrigante, de tão óbvio. Dominado pelo pavor, anda por um caminho que parece ser obrigado a seguir.

A neblina da noite por vezes corta sua imagem, tornando-o invisível. Some, aparece, cada vez mais em pânico. Seus pés possuem uma Lagoa dos Patos, têm pampas e Porto Alegre, onde o litoral é uma planície. Na sua canela reparo Florianópolis e sua beleza, o mar verde-azul cercado de pescadores. No joelho São Paulo faz-se notável pela nuvem cinza que paira sobre si. Suas costelas são florestais. É um enorme mato fechado. A Amazônia! Seus olhos indicam o norte, coqueiros, belas paisagens e sertões, secos a brotar cactos, absorvendo todas suas lágrimas por pura necessidade de líquido. Ao lado, Salvador e Recife. E a sobrancelha.

Quanto mais o tempo passa mais sinto sono. Tornam-se os passos cada vez mais lentos, a procurar pela sensibilidade um lugar seguro para pousar os pés. Efeito da tontura. A neblina aumenta progressivamente dificultando a visão. Mas o ser a acompanhar-me do outro lado da rua também prossegue. Em alguns momentos consigo avistá-lo. São os espaços onde a fumaça serrada é menos consistente. Num deles percebo um ponto de luz. Está escoltando o indivíduo geográfico. Parece um reflexo, as vezes desaparece. Conforme a intensidade da luz emitida pelas torres que tornam a rua menos escura, o objeto aumenta sua luminosidade. Só pode ser um reflexo. É um objeto de material metálico, ou qualquer coisa assim, talvez prateado, não consigo ver direito; a espelhar o precário facho de luz da rua, ora no meu rosto, ora ao meu redor, ora apenas no ar, no nada, balanceando-se no ritmo de uma passada inconsistente.

Se há um reflexo, há um objeto. Algo tem que refletir. O tremor indica que alguém carrega este objeto. A noite é fria, a umidade soma-se as dificuldades e um espirro é inevitável. A serração piora, mas preciso enxergar. Quanto mais penso no que pode estar do outro lado da rua, menos vejo. A tontura é angustiante. A dor de garganta e o estado pré-gripal são quase insuportáveis. O silêncio é a própria angústia. E, sem eu saber o que é, o reflexo de luz a andar como a sentinela de um ser estranho. Mas o que há do outro lado da rua?

A falta cada vez maior de visibilidade, a necessidade de conversar despertada pela cerveja e não liquidada após uma noite inteira de barzinho, e o medo de possíveis assaltos ou semelhantes despertam uma vontade de atravessar a rua e conversar com o sujeito. Ou apenas buscar companhia. Será que ele fala?

Abre-se um espaço por entre as nuvens de tontura e de neblina e o objeto fica mais claro. É prateado. Está seguro por uma mão de pele clara. É um revólver! Uma arma, com certeza. Uma ameaça ao emocionalmente abalado ser geográfico. Alguém está com ele. A visibilidade é uma dificuldade, mas percebo que não se trata de um assalto. É uma companhia, a dizer palavras de ordem nos seus ouvidos, a mandar o indivíduo caminhar. Alguém o orienta. Mais do que isso, alguém o obriga a andar. Diz a ele os passos a serem dados. Pode ser seqüestro, pode ser sadismo, ou delinqüência inexplicável. Há um homem segurando uma arma e apontando-a para a cabeça de um ser com a cara do Brasil.

E do outro lado da rua, sigo com meus conflitos, inseguro quanto a localização, sendo observado por um fantasma de vistas grossas, agora com mais medo, de ser reconhecido, de ser baleado, de continuar aqui. De repente algo me assusta. Desvio os olhos para verificar um barulho qualquer e é assustador, um crocodilo a brotar do bueiro há alguns metros dos meus pés. Uma boca enorme e dentes monstruosos escondem uma voz doce, a sussurrar conselhos: "São apenas visões, alucinações. Da próxima vez não beba tanto. Suas idéias são reveladoras, mas acredite, é apenas o efeito do álcool. Tudo não passa de ficção." Uma simples piscada de olhos fez sumir o crocodilo. O melhor a fazer é andar.

Alguns instantes de uma inexplicável dor de cabeça que me atingiu assim de repente me fizeram balançar. Com um pé no ar, a buscar desesperadamente pelo solo, estava tudo desfocado. Foi duro, mas consegui o equilíbrio.

Novamente andando, percebo a presença daquele fantasma, colado a minha esquerda a observar-me. Com os olhos fixos, com o corpo vulnerável, intocável, ele me escolta. Segue o mesmo ritmo que eu, a mesma velocidade, o mesmo caminho. Me acompanha, devagar, no embalo da análise. É algo semelhante ao que acontece ao ser geográfico. Um ameaçado por uma arma, outro ameaçado pelos olhos.

Do outro lado da rua, tudo segue igual. Um ser a amedrontar o outro, valendo-se de seu poderio bélico, a dizer qual é o próximo passo, a estrada a ser percorrida. Com uma arma na cabeça, o ser que carrega a Amazônia nas costas tem que prosseguir. Para onde vai, não sabe; por onde, menos ainda. Ameaçado, sem opção. Mas o seqüestrador, ou sádico, ou delinqüente, a distribuir suas ordens; não parece estranho. Veste uma camisa colorida, tem a pele clara, claríssima, e uma bermuda azul estrelada com detalhes em vermelho. É o Sam, o inatingível seqüestrador! Antes que notem minha presença, melhor eu virar à esquerda nesta esquina.

Já são quase cinco horas. Uma nova rua traz novos ares. A atmosfera de medo diminui com a ausência das figuras do outro lado da rua. Olho para a esquerda e não vejo ninguém. Minha escolta também sumiu. Parece ter desistido de mim. Mas espere, tem alguma coisa aqui! Há dois vultos, objetos volumosos a encontrar-se formando uma fina camada depressiva entre eles. Tem formas esféricas, mas é difícil definir exatamente do que se trata. Acho que são pedras, mas sua textura lembra bolas de sorvete. Aparentam beleza, apesar da escassa visibilidade. Assemelham-se a duas nádegas, que bom se fossem! Lindas, a adocicar o cheiro de esgoto no ar, a arrancar um leve mas expressivo sorriso da boca deste bêbado. A animação está nestes breves instantes superando a tontura e a boca seca.

Não há nada que me desperte mais do que algo que sugere sexo. Pode ser uma visão irreal, talvez não seja, e não é, pois estava ali, havia uma bunda perdida, provavelmente maltratada e jogada fora. Mas desperta minha atenção. É o suficiente para erigir a representação física do meu sentimento mais importante. Pensando bem, acho que foi esta necessidade copular instintiva que me fez beber. Ou a falta dela. Talvez não a sua ausência, mas a falta de qualidade na sua realização. Não há nada que seja pior do que sexo mal feito.

Foram realmente estas sensações que me fizeram passar da conta. Não sei como o ser humano consegue resistir a esta vida de prazer limitado. Coisas banais, sentimentos já sentidos, sensações já experimentadas, associações improváveis já criadas, tudo na busca de algo que não encontro. Eu não consigo. Estou cansado desta vida de confinações e de lugares comuns.

Lembro daquela frase, de quem será?, a bebida me faz relaxar e esquecer, mas enfim, seja lá de quem for, é genial: "O mundo não caminha pela força dos pulsos, mas pela força das nádegas". Certamente o ilustre autor bebeu antes de escrever. E previu filosoficamente os rumos deste mundo perdido pela falta, pela busca, ou pelo excesso de prazer. Só não sabia que o problema era tão grave. Que muitos tropeçariam em suas próprias pernas bebendo suas mágoas, perdidos nas zonas mais remotas deste mundo. Como eu, existem vários, eu sei. Sexualmente frustrados, mas incoerentes com seus sentimentos e pensamentos, fingindo estar bem. Eu não, de jeito nenhum. Sou um bêbado consciente, perdido, mas consciente. Como todos, doentes por sexo, obsessivos. Eu pelo menos reconheço. E acho que é por isso que não sou vítima deste tipo de seqüestro.

Que alívio, não falta muito para chegar em casa. Apesar da tontura e das dores nas pernas, na garganta, na cabeça; o domínio do contexto me traz um certo controle. Ao contrário de muitos irmãos, sei onde estou, aonde vou, e porque bebi. Não fosse este pingo de consciência, as coisas poderiam estar piores. A situação poderia ser semelhante a do ser geográfico. Impotente, a andar por onde determinam. Para agradar e satisfazer alguém. Alguém sexualmente descontente. Certamente um obsessivo incontrolável.

Ainda bem que estou chegando, já cansei de questionar a vida individual e coletiva.