Anjos e flores
por André Czarnobai, mais conhecido como Cardoso
Madrugada vermelha de verão. O calor dessa noite não me deixa adormecer, só me deixa preocupado com o cheiro de verão, de flores e asfalto úmido, cheiro que lembra minha infância. Abro um pouco a janela do meu quarto para tentar ver a madrugada de Porto Alegre. Para tentar achar respostas nas estrelas de Porto Alegre, nas esquinas de Porto Alegre e em cada uma das árvores dos parques. Por um segundo parece que a lua ri dos meus pensamentos.
Acendo um cigarro e me dou conta de que a resposta para todas as minhas perguntas não está em nenhum lugar dessa cidade. Na minha cama o lençol branco suavemente molda os contornos de Marcela. Abro mais a janela, para que a luz da lua desenhe mais no corpo dela. Marcela. Tem cheiro de flor e olhos de asfalto. Lembra a minha infância. Talvez por isso ela me seja tão estranhamente familiar. Parece que eu sempre soube que ela um dia seria minha. E pensar que poucos meses atrás eu ainda estava parado, desejando essa mulher, e sem nenhum pingo de coragem de dizer alguma coisa, de fazer alguma coisa. Tenho que agradecer àquele telefonema.
Tarde horrível de setembro. Meio frio, meio quente, meio úmido. Eu com dor de cabeça e gripe, escrevendo no computador. Pensando nela. Onde será que ela está? Certamente com o namorado. Será que ela pensa em mim? Será que eu realmente quero saber? Eu queria colocar minha roupa de veludo, meu chapéu panamá e sair pela cidade, de banho tomado e com cheiro italiano. Queria ir até sua casa, com um ramalhete de rosas vermelhas e dizer-lhe tudo que penso, depois nem ouvir a resposta, sair e caminhar pelo bairro. Quero que ela me ame. É, mas eu não tenho coragem. Ou não tinha. O telefone tocou.
Pensei nos olhos dela. No sorriso dela. Pensei em Marcela lambendo seus lábios enquanto sorria, e corri para atendê-la. Alô? Sem resposta. Perguntei quem era. Sem resposta. Esperei alguns segundos e percebi que o silêncio era tão profundo do outro lado da linha que eu podia ouvir meu coração. Desliguei o telefone.
Sentei-me na frente do computador e lembrei dela mais uma vez. Dessa vez, porém, com um desejo incontrolável de tomar um banho, usar meu traje de veludo e minha loção italiana. Alguma coisa me disse que era o meu dia. Comprei uma dúzia de rosas e invadi seu apartamento. As palavras voavam da minha boca. Falei muito calma e pausadamente tudo que vinha à minha cabeça.
Não tirei os olhos dos olhos dela. Ela chorou. Caminhou em minha direção e me beijou. Os espinhos das flores machucavam meu peito, mas ignorei isso. Pedi que andasse comigo pelo bairro até meu apartamento. Vinho, risadas e poemas mais tarde ela se rendeu aos meus beijos e foi para o meu quarto.
Sorriu durante todo o tempo, depois adormeceu em meus braços.
Agora pensando, lembro-me que tudo começou com o telefonema de ninguém naquela tarde. Pensei que muitas vezes, quando era mais jovem e morava com minha família, o telefone tocava e quase ninguém sentia a mínima vontade de atender. Mas alguém sempre atendia, e com pressa. Uma pressa quase insana. E do outro lado ninguém respondia. Mesmo assim, quem atendia nunca desligava sem pronunciar algumas palavras. Por quê? Lembrei-me de um pensamento que tive quando olhava as estrelas e aconteceu isso com meu irmão. Disse-lhe que eram os anjos da guarda que faziam essas ligações. Ele riu. Disse-lhe que qualquer um podia ter atendido o telefone, mas só ele teve aquela vontade irascível de fazê-lo. Tornou a rir e me disse que parasse de fumar maconha. Então eu ri e disse que os anjos sabem como a gente está só pelo tom da nossa voz. Eles parecem não dizer nada, mas estão falando com a tua alma. Se estiver indo bem, eles lhe cumprimentarão pelo sucesso; se estiver mal, lhe darão conselhos. Mas os homens são muito cegos e não percebem nem depois de terem seguido os conselhos. Pensei em agradecer o meu anjo pelo conselho que ele me deu hoje.
Apaguei o cigarro e me ajoelhei do lado da cama. Fiquei olhando bem de perto o rosto de Marcela. A cor de sua pele era ainda mais bonita banhada pela luz da lua. O perfume de flor emanava de seu corpo quente. Sorriu, depois mordeu uma ponta do lençol e ficou com ele entre os lábios. Rezei, agradecendo ao meu anjo por aquela noite com ela. Pensei no namorado dela e tive medo que assim que acordasse, voltasse para ele. Sentei-me no chão e fiquei velando seu sono, pensando no que aconteceria quando ela acordasse.
Eram quase quatro da manhã quando fui para a varanda. O telefone começou a tocar. Não senti a mínima vontade de atendê-lo. No segundo toque, Marcela acordou. Atendeu o telefone. Entrei e perguntei quem era. Ela sorriu, me beijou e disse que era uma daquelas ligações esquisitas, em que ninguém fala nada. Sorri e pensei que estava, mesmo, na hora do anjo dela ligar. E agradeci ao meu mais uma vez enquanto a beijava na rubra madrugada.