Depois de um dia quente
por André Czarnobai, mais conhecido como Cardoso
E quando acaba o dia, quando o sol se vai e não dá pra esconder o salgado na boca e o aperto na garganta? E quando tudo que um dia era simplesmente deixa de ser? E agora? Quem és tu pra me dizer que homem não chora? Nascemos, nós, machos, com a mácula do pênis. Nascemos homens, mas, antes, nascemos machos. Teremos durante nossa existência muitas vantagens. Teremos melhores salários, não teremos medo de barata ou nojo de coisa alguma.
Contudo, seremos implacavelmente vigiados e controlados, justamente no ponto que nos diferencia dos animais. Justamente no ponto de nosso caráter que nos faz diferente dos macacos. Justamente nas nossas emoções.
Emoção. Coisa indefinível, coisa que não se explica. E como explicar o que acontece quando passa a bela morena com os olhos coloridos na beira da praia? E como explicar o que acontece quando o filho diz eu te amo ao pai? E como explicar o gol do time aos quarenta e seis do segundo tempo, vitóriade virada às cinco da tarde de quarta?
Não se explica. Experimenta-se. Sente-se.
Mas para nós, machos, muito menos. Não nos é permitido converter nossa emoção em líquido límpido e quente. Não podemos verter lágrimas. Alguém me disse em criança: "é feio chorar". Homem não pode chorar, homem não pode demonstrar fraqueza. Homem é homem, mas antes de ser homem é macho. É fera, dominador, ferve o sangue e quebra a porta, deixa-a torta.
Explora, mas não chora.
Jamais.
Homem mata, pisa, agride. É selvagem, conquista. A perder de vista. Homem é guerreiro, é bárbaro, é forte. Mulher dá a vida, homem traz a morte. Homem tem inimigo, não tem medo e não demora a dizer que não chora. Homem não corre do perigo, homem não leva desaforo pra casa. É o chefe da casa. O dono, o primeiro, o senhor do mundo. Homem é o mundo.
Encerra sobre o peito de cada homem um coração, que pulsa para lhe dar sustentação e para lhe causar calor. Não demonstre medo jamais, não tenha frio, fome ou dor. Diz-me isso minha avó, minhas tias talvez. Pessoas de outra eras, outros novembros. Dizem-me o que acontecia em suas almas e nas almas de uma geração enterrada. Acredito.
Não choro. Homem não chora. Pênis não chora. A lágrima é o sangue da alma. O homem não tem alma, isso é coisa de mulher. O homem tem calma para ter o que ele quer.
Ao homem se ensina guardar, sufocar. À mulher se ensina dividir, compartilhar. O homem tem paciência e força para afogar as lágrimas debaixo dos olhos. O homem tem conhecimento dessa ciência. E pensa que domina o mundo, o coitado!! Nem de si mesmo é senhor! Tem medo do ridículo, o pobre. Medo do que os outros vão pensar.
O homem não pode ter medo. O homem é um ser contraditório. Espanta o rato que fazia pavor à mulher mas tem medo da vida. Medo de outros homens, medo de mulheres, sim, medo de mulheres. O homem tem medo de crianças, medo de meninos e meninas, medo de velhos, medo de todos que estão nas esquinas. O homem é covarde.
Esse homem nem é homem, é macho. Esse homem não chora.
Chorou meu pai ao me ver pela primeira vez. Chorou Cristo ao pedir perdão. Chorou o poeta quando a amada se foi. Chorou aquele que já se venceu. Sim! Pois homem que é homem chora, enfim. Chora de dor, de cansaço, de alegria. Chora se possível todos os dias.
Chora porque o azul da Azenha o emocionou. Chora porque o vermelho das bandeiras estreladas lhe disse que o futuro é bom. Chora porque um dia foi criança e errou. Chora ao ouvir o canto de um rei.
Chora quando o beijo não o alcançou. E também quando o alcançou - por que não?
O homem é um ser contraditório.
O homem é homem antes de ser macho. Esse homem chora.
Esse homem chora porque é livre, porque vive. Esse homem chega em casa depois de um dia quente e toma um banho sorrindo. Esse homem cultiva um jardim, nem que seja só na sua cabeça. Esse homem tem sabedoria. Diamantes preguiçosos nos olhos e músicas nas palavras. Tem sorrisos. Tem amores.
Frio, fome e sede. Medo do escuro. Filhos que ama. Amigos.
Esse homem tem o mundo em suas mãos. Ele é senhor do mundo, mas não precisa, não quer. Quer ser senhor de si e isso já lhe basta. Esse homem chora.
Não, claro, toda hora. Chora se lhe apraz, se lhe é de direito e não de dever. Chora se o motivo merecer. Mas não tem vergonha de dizer eu te amo nem abaixar a cabeça para se desculpar. Não tem medo do que os outros vão pensar.
Tem o mundo em suas mãos e não o explora. Adora.
Sorri e chora. E esquece do resto.
Choro eu, choras tu, choram homens meninos agora.
Os machos padecem em uma couraça de veneno e artérias podres.
Sorriem os homens, bebe-se o vinho e se diz bom dia ao sol nascente.
Sorriem os homens enquanto olham as mulheres dançando.
Longa vida às mulheres que nos fazem chorar, sejam elas humanas, femininas, fictícias, oníricas, industriais, societárias ou feitas de pedra.
Sorriam os homens que choram.
Longa vida aos homens que choram.