DOIS PONTOS SOBRE A ARTE HOJE
por David F.Mendes
Andei pensando sobre a produção brasileira nos anos 90 e no futuro. O cinema é a base do raciocínio, do cinema saem os exemplos, mas acho que o que eu digo pode ser discutido (e acho que vale) em qualquer campo, da literatura ao teatro, da música às artes plásticas.
Aqui está o que pensei.
1) Essa gente dos anos 90 acha que descobriu a América porque "pensa no mercado". Pensam no mercado, sim, mas com uma ambiçãozinha muito modesta pro meu gosto. Quem estudou sabe (mas quem estudou?) que o Cinema Novo foi grande exatamente porque pensava a estética & o mercado. Pouca gente sabe ou se dá conta disso. A proposta do CN era fazer um cinema brasileiro e revolucionário, único no mundo, E instaurar uma indústria cinematográfica brasileira. Os resultados foram desiguais em ambos os fronts, mas a luta (paradoxal apenas aparentemente) era essa.
O tropicalismo é uma lição ainda mais espetacular. Como o CN, os tropicalistas buscavam um paradoxo: máximo de invenção estética e máximo de inserção na cultura de massas. Conseguiram ambas as coisas.
Porque aqueles que acham que pensar no mercado é dar ao público o que ele deseja, até têm razão, mas uma razão pequena, porque o grande mercado acaba sendo conquistado por quem - como os tropicalistas, como os fabricantes dos primeiros pcs, como Graham Bell - dá ao público algo que é muito bom e que o próprio público nem sequer sabia que desejava.
Na nossa geração, o único exemplo bem-sucedido de uma proposta assim que me vem à mente é o Estação Botafogo. Nossos amigos ofereceram ao público alguma coisa que ninguém apostaria que era desejada, e alguma coisa muito boa. Hoje, são um merecido sucesso cultural (indiscutível) e comercial (como marca, o que lhes garantirá o sucesso comercial de fato, eventually). O que eles precisam agora é ousar o próximo passo, que é produzir (mas isso é outra história).
Em resumo, acho que há falta de ambição maior, ambição histórica, à produção de hoje.
2) Os grandes, ambiciosos criadores e movimentos da cultura (não só, mas principlamente) brasileira dos anos 50 e 60 eram ao mesmo tempo artistas e pensadores. É indispensável que seja assim num país como o Brasil, onde a academia é basicamente composta de comentadores mais ou menos medíocres de conteúdos franceses, alemães ou americanos, com raros (se algum) pensadores originais; onde a crítica especializada não dispõe há décadas de espaços adequados de expressão (e por isso quase acabou ou se viu reduzida ao raquitismo). Num país assim é necessário e desejável que os próprios realizadores pensem em voz alta (em voz tão alta quanto possível) o seu fazer. Não sei quem foi que disse que "quem sabe o que é bom em música são os bons músicos", mas concordo plenamente.
De Kandinski a Godard, de Oswald de Andrade a Glauber Rocha, quase toda época-lugar histórico em que se dá um movimento cultural expressivo conta com artistas-pensadores que eletrificam o ambiente artístico.
Um raro exemplo de alguém que busca produzir e pensar o que produz (e que também equaciona com muita propriedade a questão mercado x inovação) é Nelson Hoineff. Ele produz programas populares, como o Documento Especial (que quando de seu lançamento foi radicalmente inovador), e de experimentação (Primeiro Plano) e escreve livros (indispensáveis) em que pensa com precisão e sinceridade o meio em que trabalha, a televisão.
Entre 87, 88 e a primeira metade dos anos 90, produziram-se alguns curtas-metragens interessantes no Brasil. Mais importante que a qualidade dos filmes foi a sua quantidade, a repercussão que essa produção alcançou, e a diversidade de propostas surgidas. Uma coisa lamentável, porém, foi que nenhum dos principais realizadores do período se propôs a pensar em voz alta sobre o que estava fazendo.
Que eu saiba (que eu me lembre), apenas eu mesmo - na Tabu, no JB, na Folha e em publicações especializadas da Associação de Críticos e da Fundação do Cinema Brasileiro - fiz tentativas de pensar essa produção de um ponto-de-vista de realizador (o problema é que àquela época eu ainda era ligeiramente mais crítico que realizador). Claro que outros autores escreveram sobre os curtas (Amir Labaki, Ricardo Cota, Ivana Bentes, entre outros), mas eles sempre o fizeram - porque essa é a posição deles - de um ponto-de-vista (válido e importante) "de crítico", e não - como eu tentava fazer - de um ponto-de-vista de realizador, num diálogo de realizador para realizador.
Por que será que nem os gaúchos, que fizeram mais e melhores filmes nesse período, nem outros realizadores, como Torero, Chiquinho, Tata Amaral e outros a;parecidos nessa época, tentaram ou se propuseram a pensar em voz alta o que estavam fazendo?
Sei lá. Mas o que eu sei é que o cinema brasileiro só irá superar o momento atual - francamente medíocre (os bons filmes não desmentem que a atmosfera é medíocre) - se a produção for pensada por quem a faz, e for sendo refeita à medida que se pensa, por quem faz e pensa.
David F. Mendes